terça-feira, 22 de maio de 2012

As Lágrimas na Morte de Kim Jong Il e o Delírio Mesmérico da Gloriosa Mídia Livre


Algum tempo atrás, ali pela época da morte de Kim Jong Il, líder da Coréia do Norte, conheci um sítio curioso na internet. Ele se chama 'Kim Jong Il Looking at Things' (aqui): Kim Jong Il olhando coisas. É composto apenas de fotos, com algumas linhas de texto que dizem "o querido líder gostava de olhar coisas. Atualizado dia sim, dia não, algumas vezes durante os fins de semana." Uma mensagem singela, seguida de várias fotos que mostram o líder olhando coisas as mais diversas: gansos, plantas, um canal, uma rede de pesca de nylon, crianças, capacetes de soldados, ilustrações, pedras, livros, uma impressora, operários industriais, lulas (os animais marinhos, quero dizer), um console de instrumentos, um templo, potes de cerâmica, espigas de milho, uma guia turística e até mesmo para o teto...

As imagens não mostram nada além disso: Kim Jong Il olhando. Olhando as coisas mais comuns, inocentes. Alguns recorrerão a um meme conhecido e decretarão: é culto à personalidade. No entanto, apesar de o sítio como um todo ser obviamente propagandístico da figura do líder, esta parece carecer daquela aura de poder, de autoridade, que se espera de algo como um culto à personalidade. Não se mostra mais que um senhor de idade, traje informal (nunca aparece de terno), tratado aparentemente com deferência (mas não com adoração, ou reverência) pelos que o cercam. Nenhuma cena explícita de poder ou de autoridade: simplesmente um homem olhando, sempre olhando.

Fica claro, pela diversidade e mesmo pela banalidade das fotos, que o objeto do olhar do líder não é de maior significação. Significativo é, isso sim, o fato de que todas mostram Kim Jong Il olhando. É o olhar dele, não o objeto deste olhar, que está sendo mostrado nas fotos. Na grande maioria das fotos ele não faz nada alem de olhar; algumas vezes parece ouvir o que lhe falam. Rosto impassível, sempre de óculos (escuros em ambiente aberto, de grau em ambientes fechados). Quase nunca sorri, a exceção sendo quando aparece em fotos com crianças, com as quais às vezes parece estar conversando.

A mirada de Kim Jong Il não se mostra ameaçadora, autoritária ou invasiva: ela não é o equivalente da teletela de 1984de Orwell, nem dos edifícios de paredes de vidro de Nós, de Zamiatyn. O Glorioso Líder dos Povos apenas olha. Se algum significado pode ser atribuído ao seu olhar, creio que é o do testemunho. Ele presencia a vida cotidiana de seu povo em todos os seus aspectos públicos e assim sua presença se torna um testemunho daquela. Simples assim.

Um corte rápido aqui e vejo agora em minha memória o lamento popular no funeral do Glorioso Líder dos Povos. A multidão chocada, a dor profunda visível nos rostos das pessoas presentes na praça central de Pyongyang. Milhares se debulhando em lágrimas obviamente sinceras. E, principalmente, o espanto, a incredulidade com que nós, estrangeiros 'ocidentais', recebemos este lamento. Aqui, novamente, o meme fácil salta à língua: são um povo enganado, controlado, adestrado no culto ao ditador defunto desde crianças.

Felizmente não temos isso.

Memes, esses pequenos fragmentos de ideias, tem mesmo essa característica. Infinitamente repetidos pela mídia, eles parecem - involuntária e às vezes inconscientemente - saltar diretamente da memória para a língua sem a intermediação do pensamento crítico. Seu uso contínuo e acumulado, articulado, cria uma imagem mental do mundo sobre a qual não pensamos - sobre a qual, na verdade, nos recusamos a pensar. Uma imagem mental é, é claro, da mesma natureza que um delírio, uma alucinação. Memes e suas articulações são mais ou menos como uma viagem de ácido, mas sem o benefício da privacidade. Pois essa imagem mental é compartilhada por muitos, pela maioria mesma da sociedade em cuja mídia aqueles circulam. São na maioria das vezes sutis demais para que a maioria perceba sua presença: os ditadores da Líbia e da Síria, versus o presidente do Iêmen, o rei da Arábia Saudita; a censura da internet na China versus o monitoramento da internet pela CIA americana; a primavera da democracia dos protestos árabes versus os baderneiros dos protestos anti-G8 e OTAN; os dissidentes políticos em prisões cubanas versus os terroristaspresos pelos americanos em Guantánamo; o terrorismo da Al Qaeda versus os ataques preventivos dos americanos.

Todos estes são memes que fazem parte de nosso cotidiano neste começo de século. Eles formam como que a base de uma comunicação consensual nas pessoas submetidas a eles, de forma que quando contestados chegam mesmo a despertar a ira mal disfarçada destas. Como se aquele que não os reproduz - viralmente, como em computadores - fosse excluído do mundo compartilhado pelos indivíduos da sociedade. Um pária, um estranho que - como todo estranho - é inconfiável. Este mundo delirante se assemelha assustadoramente ao mundo drogado compulsoriamente descrito por Stanislaw Lem em O Congresso de Futurologia ou, para usar uma imagem mais popular, à Matrix todo-poderosa do filme dos irmãos Wachowski.

Esta imagem mental tem um sentido claro: ela cria um 'nós' que é essencialmente diferente dos 'outros' que não compartilham dela: os terroristas árabes, os ditadores asiáticos e cubanos, os desordeiros dos protestos anti-globalização são os 'outros.' A articulação destes poderosos memes cria uma ideia recorrente:

Felizmente não temos isso.

Não temos? Isso é algo para se pensar. E pensando saímos da área de segurança criada pelos memes, no aventuramos no terreno desconhecido de uma realidade imperfeitamente cartografada, cheia de zonas de penumbra e imprecisões. E, acima de tudo, caímos em uma zona onde os limites entre 'nos' e os 'outros' não são claramente definidos. Começamos assim a perceber - incomodamente, para a maioria - que temos todos, 'nós' e 'eles', muito em comum.

Certamente não temos líderes estranhos que olham as coisas e gente que publica fotos dele fazendo isso, dirão vocês. Não temos necessidade de alguém que testemunhe nossa vida. Mas será? Creio que temos sim. Claro, não temos uma pessoa que o faça, mas temos uma entidade cujo papel é fazer exatamente isso: testemunhar e tornar este testemunho visível a todos. Esta entidade não é única: temos nossos Kim Jong Marinho, nossos Kim Jong Macedo, nossos Kim Jong Civita e mais aí uma meia dúzia de três ou quatro, talvez.
Oh, claro, eles não aparecem em pessoa, como Kim Jong Il. Há uma entidade invisível que cumpre esse papel, e temos que admitir aqui o grande poder dos memes sobre nossas percepções. Porque nossa crença nessa entidade invisível é tão forte que nossa indignação quando se a desacreditam é tão grande, ou mesmo maior, que o pesar dos coreanos pela morte do Glorioso Líder dos Povos.

Nós temos a Gloriosa Mídia Livre.

Convenhamos: acreditar na existência desta entidade invisível e benéfica, que tudo presencia na esfera pública e a todos traz seu testemunho fiel e verdadeiro sem invadir a privacidade daquilo (daqueles, melhor dizendo) que presenciou exige um esforço-um esforço delirante, digamos - muito maior que acreditar na existência de Kim Jong Il como executor da mesma tarefa. Este último ao menos tinha uma existência de carne e osso. Um a zero para os 'nossos' memes.

Mas, dirá você, certamente não se pode comparar uma mídia plural livre com um monopólio da informação de um país totalitário (sendo estes outros memes muito difundidos). Na verdade, talvez esteja aí a primazia dos 'nossos' memes sobre os 'deles': aqui temos vários para fazer o trabalho que lá é feito por um só... Claro que a eficiência aumenta nestas condições.

Mas ainda, dirá você novamente - e realmente dirá ou ao menos pensará, sei disso justamente porque os memes que informam sua percepção não são parte do repertório privado da sua memória mas são públicos, compartilhados por muitos -no caso de Kim Jong Il trata-se de uma ditadura que controla a informação, que manipula, que mente. Que submete a disseminação da informação aos ditames do poder do Estado.

Neste ponto, talvez você tenha dificuldade em terminar a sentença, logo termino para você: ela termina coma inevitável comparação, hoje complicada de ser afirmada em voz alta, de que 'aqui, nossa mídia livre não tem dessas coisas'. Difícil porque depois dos últimos escândalos envolvendo a Gloriosa Mídia Livre com o crime, a contravenção; da criação de mentiras midiáticas para manipular instituições, destruir credibilidades, criar credibilidades artificiais; atacar governos e oposições, etc, etc; fica realmente difícil terminar a sentença. A manipulação dos memes pela mídia tem sido falha atualmente; erros na Matrix deixaram à mostra mais do que deveria estar exposto; pequenos fragmentos de realidade se intrometeram em nosso delírio mesmérico. Temos hoje a oportunidade de ver, ainda que de relance, um mundo real ao qual não tínhamos acesso até então.

Resta saber o que faremos com ele.

sábado, 19 de maio de 2012

Ye Olde Man




The old man goes down the street.
His memories go with him, faithful companions
down the street.
His gray hair shines in the summer sun.
How many summers behind? 
How many summers ahead?
He does not know
he does not count.
His memories make him forget.
Time and again in his stroll he goes down the streets of his youth.
They are always with him, the streets of his youth
in every street he walks down.
He knows the streets are but one, 
have been one throughout his life
throughout his walk
and they all lead to the same end.

(Inspirado em um poema de Konstantinos Kaváfis)

sábado, 28 de abril de 2012

O Índio, O Apito, a Mídia - e Nós


No julgamento do STF sobre as cotas 'raciais' nas universidades públicas, um episódio chamou a atenção da mídia mais que o julgamento em si mesmo: um Índio Guarani - aparentemente chamado Araju Sepeti, que é obviamente um anagrama de Sepé Tiaraju e, segundo matéria do Estadão é representante de uma ONG sul-matogrossense chamada Central da União de Índios e Aldeias - interrompeu o voto de um dos ministros, Luis Fux, quando este mencionava a ausência de representantes afrodescendentes na magistratura, com gritos de 'tem que falar dos Índios também!'. A repetição das interrupções por mais duas vezes fez com que o ministro interrompesse o voto e solicitasse sua retirada do plenário. Um espectador, negro, tentou acalmá-lo e foi insultado por ele com vituperações sobre 'voltar para seu quilombo'. O Índio foi retirado á força do plenário, carregado por cinco seguranças até o lado de fora, onde se transformou em objeto do desejo dos fotógrafos presentes.
Mais interessante, no entanto, tem sido a circulação dessas fotos pela internet e os comentários que elas tem gerado. Um comentou: "aonde está a tão propalada inclusão social?" Como se retirar alguém que interrompe um julgamento do STF - na apresentação dos votos a palavra não é aberta - e insulta os presentes fosse um ato de exclusão SOCIAL. Certamente é um ato de exclusão... do recinto do STF, que se presta pobremente a metonímia da sociedade brasileira, neste caso.  Outro comentário (no artigo do Estadão, aqui) afirmou que 'faltou aos juízes conhecimento antropológico da sociedade Indígena', que seria, segundo o comentarista, 'tem uma cultura geral assembleísta, horizontal, interacionista, participativa' e por isso - chamo a atenção para a conclusão embutida no raciocínio - deveria ter sua 'intervenção' aceita no julgamento.
Não vou comentar aqui a 'antropologia' da carochinha exposta como base do raciocínio. Quero, isso sim, comentar o raciocínio mesmo, o 'deixa rolar porque ele é Índio' que é a base do comentário. Para muitos isso pode parecer uma atitude 'revolucionária': permita-se aos Índios aquilo que a nós, não-Índios, não é permitido! Mas... por que, afinal de contas? Sei que essa pergunta é incômoda (sempre é, aliás). Mas necessita ser feita. Por que permitiríamos aos Índios aquilo que não permitimos - não consideramos válido, nem correto - a nós mesmos, não-Índios? De onde vem esse direito que aparentemente é dado aos Índios e não a nós?
Bom, os Índios tem realmente direitos que lhes são exclusivos e não se estendem aos não-Índios. São os chamados direitos originários, que vêm do fato de que eles, os Índios, estavam originariamente aqui na Terra Brasilis quando estas foram invadidas pelos europeus. Os Índios foram desde sempre considerados súditos do Rei de Portugal e tais direitos originários provêm desta condição. Mas entre eles não está o direito de falar onde quer que queiram, ou insultar negros presentes em um julgamento do STF. Até aí tudo bem; mas o que é realmente interessante, como disse, não é quais direitos eles possuem ou não possuem, mas a percepção de muita gente que parece lhes atribuir tais 'direitos', ou reconhecê-los tacitamente. Pensem bem: se o cara carregado para fora da plenária do STF não usasse cocar, teriam suas imagens - que ninguém me convence que não foram armadas de antemão com algum fotógrafo solícito -  comovido tanta gente? Teriam elas sido veiculadas celeremente por aí pela internet, repositórios de comentários sobre exclusão social? Não creio.
De onde vem essa capacidade de mobilização do imaginário popular - pois imaginados eram todos os comentários que vi a respeito das fotos, nos quais o Índio é tomado como símbolo de algo maior que ele mesmo e seu cocar - que a imagem do Índio circulando na internet parece possuir? Na minha opinião, ela vem da concepção de sociedade brasileira - concepção extremamente arcaica e por isso mesmo conservadora, reacionária - que nós guardamos carinhosamente bem no âmago do nosso ser, naquele espaço instintual que resiste a toda e qualquer racionalização. Ela é uma imagem inconsciente, um animus que nos mostra uma realidade psicológica que resistimos a integrar na nossa apreciação racional do mundo. O Índio da nossa imaginação mais íntima é antes de mais nada uma criança. Uma criança que somos nós mesmos.
Que Índios sejam considerados crianças no pensamento político nacional não é, é claro, nenhuma novidade. Eles o foram durante quase toda a história do país - mais especificamente até a Constituição de 1988 - e continuam a sê-lo por todos aqueles setores da sociedade (em especial os indigenistas mais retrógrados) para os quais a Constituição jamais penetrou na cabeça. Esta é a origem das políticas paternalistas que tratam os Índios como 'incapazes' e portanto desculpáveis quando - por exemplo - interrompem julgamentos do STF. Mas acho que o que está em jogo aqui é mais que isso. Se assim não fosse, como entender que pessoas jovens, progressistas, não vinculadas ao pensamento indigenista tradicional nem ao conservadorismo político, se comovam tanto com as imagens do sujeito de cocar sendo posto pra fora do recinto do STF, a ponto de as replicar sem ao menos verificar o porque da coisa? Gente que em outros instâncias se pauta por comportamentos críticos mas aqui, de repente, abandonam toda a capacidade crítica para usar as imagens do Índios expulso como símbolo de todas as mazelas do país?
Não, acho que há algo mais por detrás disso e creio que o lugar para procurar este algo mais está naquela parte de nossos serem que não atende aos apelos da razão. Que não é crítica simplesmente porque nós a isolamos e protegemos da nossa capacidade de apreciação crítica. Nestes campos inconscientes do nosso ser - de nossos seres - nós somos crianças. Nos relacionamos com o Estado como crianças frente a pais severos e (ocasionalmente) protetores. Creio que vem daí nossa relação 'filial' com o cargo de presidente da república, que vemos (idealmente) como algo paternal, protetor, acima de congressos e juízes, algo que vem para endireitar o torto, consertar o errado, trazer a ordem para o mundo. Nossa 'pátria' - que em português, paradoxalmente é feminina: a mãe-pátria - tem um esposo que é o Grande Provedor, Aquele Que manda na Casa. Nosso Presidente Imperial - a encarnação do Estado na pessoa - é um Pai, um Protetor.
Porém, é complicado assumir isso ao nível da consciência. Aqueles que militamos pela democratização das estruturas do Estado dificilmente nos sentiríamos confortáveis em assumir a posição de filhos reclamões de um Estado-pai. Daí a utilidade da figura do Índio, este sim facilmente assimilável ao papel de criança - uma criança política, que em sua 'inocência' pode se mostrar no papel infantil que nós mesmos autocriticamente recusamos a nós mesmos. O Índio é um Outro - logo, distante de nós - que pode de maneira segura encarnar nossa própria infantilidade frente ao Estado. E podemos nos regozijar de suas atitudes 'inocentes' como se estas fossem nossas próprias: nosso desejo negado, encoberto.
Projetamos no Índio sendo expulso do STF nosso próprio desejo de sermos tutelados - isso é, de sermos tratados como crianças rebeldes, mas amadas - pelo Estado-pai contra o qual nos insurgimos em nossa vida consciente de militantes políticos e cidadãos. Daí, creio, a revolta viva contra as imagens veiculadas na internet, como se elas representassem realmente uma transgressão aos direitos do Índio - e aos nossos.
Muitos Índios - que não são crianças, nem inocentes, mas muitas vezes são agentes políticos refinados - com certeza percebem, ainda que de forma difusa, essa nossa tendência a projetar sobre eles uma parte de nós mesmos que temos dificuldade em assumir racionalmente. E a utilizam em suas manifestações políticas. Algumas vezes de maneira inescrupulosa, como creio que é o caso destas imagens veiculadas na internet do Índio sendo expulso do STF.
Na real, não se trata de nada além de alguém perturbando um julgamento que foi posto pra fora. Se algum dos votos dos ministros fosse contra as cotas 'raciais' - que aliás incluem também Índios - e o cara de cocar tivesse feito sua 'manifestação' durante este voto, teria sido transformado em mártir, em símbolo da luta pelas cotas. Mas isso não aconteceu e ele se deu mal. A permanência dessas imagens na internet e os comentários associados a elas não tem, por isso mesmo, nada a ver com a questão das cotas. Tem a ver conosco. E em algum momento teremos que assumir isso.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Menos que Zero: À Procura (e a Fuga) de uma Imagem

Um dia desses, voltando de uma reunião no Rio, comprei no aeroporto um livro de bolso para me distrair na viagem maçante de volta, que envolvia uma dessas conexões eternas em algum lugar ainda mais distante do ponto de chegada do que meu ponto de partida original. Era um livro de Bret Easton Ellis, seu primeiro: Abaixo de Zero (que na verdade deveria se chamar 'Menos que Zero' de acordo com o título original, Less than Zero, o que faria mais sentido). Não conhecia o autor - sou conservador para autores novos e carente de autocrítica o suficiente para achar 'novo' um autor praticamente da minha idade - mas li na contracapa, tarde demais (depois de haver pago) que era o autor de American Psycho, cuja versão para o cinema havia visto. E não havia gostado. Não havendo nenhum outro título que me fosse interessante na banca de jornais do Galeão, me resignei a transformar minha perda em investimento e abri o livro.
Gostei dele. A prosa rápida me lembrava algo que não consegui definir até ali pela metade do volume, por volta da terceira hora da minha espera pela conexão. A princípio, a história de adolescentes ricos de Hollywood, drogados, pansexuais e sem alma - acho que é a melhor definição que me vem à mente para seus personagens - me foi meio repulsiva. Certamente não pelas drogas e sexo baratos - bom, a cocaína não era tão barata assim - que transbordam do livro como molho em um cachorro-quente na madrugada. Tampouco pelas referências ao mundo MTV ou a bandas pop californianas meia-boca, ou coisas como estupros coletivos de garotas de doze anos. Nada disso é tão impactante assim pra quem viu coisa pior que estupros de crianças e bandas californianas meia-boca. Era mais pela grana. Grana alta, talvez o personagem mais presente no livro depois do alter-ego do autor, Clay, o narrador em primeira pessoa. Não podia deixar de pensar (sou um cientista social, afinal) que aquela demonstração constante de poder-grana, que dava porsches e BMWs e mesadas de quatro dígitos (em dólar - e dólar era chique,então) a adolescentes sem idade para ter carteira de motorista, era feita com a miséria de países como o que eu vivia, então - a ação se passa no natal de 1985 - quebrados, fodidos e tremendamente mal pagos, em cruzeiros.
Mas ainda assim a narrativa - sim, a narrativa mais que a história, percebia então - me prendia a atenção. Não era, como Alberto Manguel disse a respeito de outra novela de Ellis, algo do tipo que a gente tem quando enfia o dedo na garganta. Não, certamente não era uma convulsão das entranhas. Isso é dado pela história que se conta, não pela forma de contá-la. E a história contada não me era tão pouco familiar assim, com sua trama de atividade pan-erótica, violência e cocaína, para que eu a achasse repulsiva. Mesmo reconhecendo nela a barbárie, esta não me era exótica o suficiente para provocar ânsia de vômito. Não, o que me atraía era a forma com que Ellis contava a história. Essa não era apenas uma história sobre Hollywood. Essa história contada, essa narração, era Hollywood.
Antes de mais nada, preciso esclarecer: não sou crítico literário. Sou leitor, ponto. Minha relação com a literatura está sempre do lado do - no interior do - mundo criado pela obra literária e resisto a qualquer tentativa de me arrancarem de lá através de analises críticas dos livros que leio. Leio até mesmo literatura-experimento textual com um esforço sincero - e normalmente infrutífero - de me entranhar no mundo da história, mais que na trama da narrativa. Mas sou um tipo de crítico de cinema, da escola de Halley - voltando a circular por aí depois de décadas nas quais me afastei do cinema em benefício (ou não) da antropologia. E o que chamou minha atenção foi precisamente isso na narrativa de Ellis: ela é cinema, antes de ser literatura.
Na verdade, acho que essa foi a primeira vez que entendi aquilo que Walter Benjamin dizia, que hoje - na modernidade atual, quer dizer - nós pensamos como cinema; nossas memórias e recordações nos vêm como um filme. Esse é o impacto que a manipulação narrativa da imagem na era da reprodução técnica tem sobre nós. Nós pensamos as imagens de nossa existência mais íntima como se fosse um roteiro de filme realizado em nossas mentes. Esse livro é precisamente isso: um texto à procura de imagens. Mais que isso, um texto construído como uma sucessão de imagens editadas em uma narrativa rítmica tipicamente cinematográfica hollywoodiana - mas com uma armadilha embutida.
A primeira coisa que atraiu minha atenção, imediatamente assim que li a primeira página - ou deveria chamá-la primeira sequência? - foi o tempo da narrativa. Um presente do indicativo que - vi depois - se repete ao longo de todo o livro, página a página. Como disse, não percebi o que era até mais ou menos a metade do livro, quando então a ideia pousou na minha mente com impacto pesado, parecido com o das rodas do avião na aterrissagem da primeira perna do meu voo de volta: esse é o tempo de um roteiro. O presente do indicativo eterno, que se sucede a cada nova cena descrita e que corresponde ao croqui do story-board que orienta o diretor na filmagem da sequência. Cada 'sequência' da narrativa de Ellis tem unidade dramática; elas se fecham sobre si mesmas, como as sequências em um roteiro. Completas, elas são sempre no presente do indicativo, usualmente na primeira pessoa do singular. Isso também se mostrou bastante revelador: se transformadas em imagem, estas sequências teriam certamente um narrador em off, narrando na primeira pessoa do singular o desenrolar da cena. Exatamente como em um filme noir de John Houston. Gale Cengage (em uma crítica aqui) afirmou que a prosa de Ellis guarda similaridades com a de Raymond Chandler, o que aparentemente não foi confirmado pelo autor. Acho que a similaridade não está na prosa de Chandler, mas justamente na prosa filmada dele e de outros romancistas noir. É à imagem noir, não ao texto noir, que se assemelha a narrativa de Ellis.
E não para aí. Há no livro momentos em que personagens rememoram coisas acontecidas em um tempo anterior ao da narrativa. Esses flashbacks - no sentido cinematográfico - são uniformemente narrados no pretérito. São sempre dependentes da narrativa-mestre no presente do indicativo, sendo introduzidos em momentos em que detalhes desta evocam uma lembrança. Exatamente como em um filme hollywoodiano padrão. A impressão fílmica aqui é tão forte que eu era tentado a levantar os olhos quando um flashback irrompia na narrativa, como os personagens de filmes dos anos cinquenta. A bem da verdade, flashbacks normalmente são escritos no presente do indicativo em roteiros; mas são precedidos do termo 'flashback' para identificar seu tempo passado, um recurso que Ellis não usa textualmente - mesmo porque ficaria extremamente artificial dentro de sua narrativa. Mas o passado simples, junto com o uso de itálicos, me parecem substitutos à altura, resolvendo o problema da indexação da cena ao passado diegético, ou ao da narrativa literária).
Para além das descrições que privilegiam a ação de personagens e o contexto imediato destas ações e do diálogo curto e seco, matter-of-fact, que acompanha a descrição da ação dos personagens, inclusive do alter-ego do autor, ambos típicos de roteiros hollywoodianos, outros elementos fílmicos encontram uma transliteração engenhosa para o plano da narrativa textual. O mais evidente é o que às vezes se chama em cinema de contraponto: uma ação se desenrola em uma tomada alternadamente a outra, normalmente sem impacto narrativo, que irrompe, por assim dizer, em fragmentos que pontuam a ação principal da tomada. Assim, por exemplo, a cena onde uma das personagens femininas dialoga com o alter-ego do autor e joga um cigarro quase inteiro no chão. Um cachorro come o cigarro e o vomita. A narrativa intercala o diálogo (e a descrição da cena) com trechos rápidos onde a ação do cachorro é descrita em 'flashes' rápidos 1) abrindo o cigarro com a boca; 2) começando a comer o cigarro; 3) terminando de comer o cigarro; e 4) regurgitando o cigarro. 1), 2) 3) e 4) são intercaladas na descrição da cena principal, de forma que quando o diálogo dos personagens acaba o trecho 4 da 'cena' do cachorro fecha a sequência narrativa.
Esse artifício narrativo é típico do cinema, tendo sido amplamente utilizado nos filmes americanos da época. Vejam que isso não se confunde com a montagem paralela 'clássica', onde duas cenas de igual importância para a narrativa são intercaladas, como na cena clássica da perseguição da diligência, de John Ford, onde cenas da diligência e dos índios se sucedem ritmicamente. Aqui, trechos da segunda cena, sem importância direta para a narrativa (mas às vezes simbólica, como comum em filmes noir - e que acontece também no livro de Ellis) apenas servem de contraponto ao desenvolvimento da ação significativa em termos diegéticos.
Mas toda essa aproximação com a narrativa fílmica guarda uma armadilha. E essa remete à unidade dramática do livro como um todo, em contraposição às suas 'sequências'. Porque enquanto as últimas tem sua unidade dramática definida precisamente em termos fílmicos, a obra como um todo não. Diferentes dos filmes padrão hollywoodianos - que tem uma estrutura narrativa rigidamente definida, com seu núcleo dramático definido a cerca de 3/4 do filme como um todo (quando as situações conflitantes de que é composto o drama 'se resolvem') e que conclui com o já conhecido e obrigatório 'final feliz' - a narrativa de Ellis é uma sucessão de 'tomadas' que reafirmam o mesmo conflito básico em diferentes contextos, encerrando - sem um ponto culminante, pecado mortal na fílmica hollywoodiana - com a constatação de que '...[e]ra hora de voltar. Estava há muito tempo em casa.'
O último, curto, parágrafo final, que se segue a essa conclusão, não descreve nenhuma cena visualmente, sendo um dos únicos do livro a não o fazer. Talvez seja também o único de todo o livro a evocar uma reminiscência sem o recurso da 'marca de flashback' e que começa no passado. A mudança, inusitada na narrativa, acontece justamente quando o personagem - ou seu alter-ego, o autor? Certamente não podemos afirmar aqui, como Chesterton, que a boa literatura diz a verdade sobre o personagem enquanto a má o diz sobre o autor - fala sobre... uma imagem evocada por uma música:

Há uma música que ouvi quando estava em Los Angeles, gravada por um grupo de lá. A música se chama "Los Angeles" e a letra e as imagens eram tão amargas e brutais, que a música reverberou na minha mente por dias. As imagens, descobri depois, eram pessoais e ninguém que eu conhecia compartilhava delas. As imagens que eu tinha eram de gente enlouquecendo por morar nessa cidade. Imagens de pais tão famélicos e frustrados que comiam seus próprios filhos. Imagens de pessoas, jovens, da minha idade, erguendo os olhos do asfalto e ficando ofuscados (sic) com o sol. Essas imagens permaneceram comigo depois de eu ter deixado a cidade.(...)

A evocação é significativa aqui. Feita após a conclusão da ação, ela adquire contornos de uma narrativa em off que acompanha a última cena, que conclui - como em um road movie - com a necessidade de voltar, de ir para longe da cena da narrativa, a cidade de Hollywood, descrevendo um momento no tempo que é posterior à ação mesma e confirma o deslocamento espacial do personagem. É, ademais, uma reflexão de caráter moral, a única de toda a narrativa. Esse recurso estilístico, típico - novamente - de filmes noir (e de muito do cinema dramático americano pós- filme noir). Tipicamente, seria uma narrativa em off na voz do personagem principal, que acompanharia a cena deste sumindo na distância, se afastando do local onde transcorreu a ação.
É na conjugação destes elementos - a descrição explícita de uma imagem evocada por uma música, um julgamento moral relativo precisamente ao tema central da narrativa  -  que Clay, alter-ego de Ellis, se revela como um 'homem em crise' vivendo uma 'vida mínima' para usar a expressão de Ortega e Gasset (como mostra Mike Grimshaw em seu excelente estudo, que pode ser visto aqui). Mas é aqui também que ele se mostra como um personagem (ou um autor?) à procura de uma unidade na narrativa de sua vida e de seu mundo. E essa unidade é dada pela evocação de uma imagem.
É essa imagem que preenche de significado a história contada - como em um 'mau' filme, sem desenvolvimento, sem ponto culminante, sem resolução do conflito, sem final feliz - através de um 'roteiro' que descreve um interregno de uma viagem. O período entre chegar à cidade e sair dela, marcado na narrativa precisamente pela primeira frase: 'As pessoas tem medo de mudar de pista nas vias expressas de Los Angeles', frase que o autor não compreende e cuja tradução não faz jus ao original: 'people are afraid to merge in freeways in Los Angeles'. O trocadilho é intraduzível aqui, mas essencial para a compreensão do livro. People are afraid to merge in freeways (in a free way?) in L.A. As pessoas tem medo de se unir de (maneira livre) em L.A. O livro começa com uma elocução - com a palavra falada - sobre a impossibilidade de se viver em comum com outros livremente em L.A.; e conclui com uma imagem - significativamente, gerada por uma música chamada igualmente Los Angeles - que sintetiza, como fazem as imagens, esta mesma impossibilidade. Uma viagem redonda, mas que não volta exatamente ao ponto de partida porque conclui com a obtenção de uma imagem  sintética daquilo que antes era apenas palavras sem sentido.
Agora finalmente, Clay (ou Ellis?) entende. Porque tem uma imagem a lhe guiar, uma imagem que sintetiza esta cidade cujo business - que a torna ímpar no mundo - é justamente produzir imagens, estas imagens da era da reprodução mecânica que são justamente o marco de uma modernidade que não mais tem o sustento (e já não o tinha no tempo da narrativa, a  era Reagan, quando a vida americana se transformava num gigantesco filme hollywoodiano de mau gosto) das ilusões que a tornavam até então aceitável, palatável. O que Clay - e Ellis - vislumbram aqui é a modernidade nua, sem subterfúgios, que devora eternamente seus próprios filhos e da qual não mais nos livramos. Como ele coloca ao final do parágrafo - e do livro:

(...) Imagens tão violentas e malignas que pareciam ser meu único ponto de referência por muito tempo. Depois que parti. 

domingo, 15 de abril de 2012

A Autobiografia de J.G.B., por J. G. Ballard (Publicado no The New Yorker, 11.05.2009, tradução minha)



Ao acordar uma manhã, B se surpreendeu ao ver que Shepperton estava deserta. Entrou na cozinha às nove, irritado ao ver que nem sua correspondência nem os jornais diários tinham sido entregues e que uma queda de energia o impedia de preparar seu café da manhã. Gastou uma hora encarando o gelo derretido que pingava de seu refrigerador e então foi à porta ao lado reclamar para seu vizinho.

Surpreendentemente, a casa de seu vizinho estava vazia. Seu carro permanecia na garagem, mas a família inteira - marido, mulher, crianças e cachorro - havia desaparecido. Ainda mais estranho, a rua estava tomada por um silêncio inquebrantável. Nenhum trânsito se movia na rodovia próxima e nem uma única aeronave voava por sobre sua cabeça em direção ao aeroporto de Londres. B cruzou a rua e bateu em várias portas. Através das janelas ele podia ver os interiores vazios. Nada neste subúrbio pacífico estava fora de lugar, exceto seus habitantes desaparecidos.

Pensando que talvez alguma calamidade terrível fosse eminente - uma catástrofe nuclear ou uma epidemia súbita após um acidente em algum laboratório de pesquisa - e que por alguma infelicidade apenas ele não havia sido avisado, B retornou para casa e ligou seu rádio transistor. O aparato funcionou, mas todas as estações estavam silenciosas, as transmissoras do continente tanto quanto as do Reino Unido. Desconcertado, B retornou para a rua e mirou o céu vazio. Era um dia calmo, cheio de sol, o céu cruzado por nuvens pacíficas que não deram qualquer pista de algum desastre natural.

B pegou seu carro e dirigiu até o centro de Shepperton. A cidade estava deserta e nenhuma das lojas estava aberta. Um trem estava na estação, vazio e sem nenhum dos passageiros que viajavam regularmente a Londres. Deixando Shepperton, B cruzou o Tâmisa até a cidade próxima, Walton. Lá encontrou novamente as ruas completamente silenciosas. Parou na frente da casa de sua namorada P, cujo carro estava parado em frente da entrada. Usando a chave reserva que carregava, destrancou a porta da frente e entrou na casa. Mas enquanto chamava seu nome, já podia ver que não havia nenhum vestígio da jovem. Ela não havia dormido em sua cama. Na cozinha, o gelo derretendo no refrigerador havia formado uma grande poça no chão. Não havia eletricidade e o telefone estava mudo.

Retomando sua jornada, B sistematicamente explorou as cidades vizinhas, contornando-as todas à medida que se aproximava do centro de Londres. Não ficou surpreso ao ver a enorme metrópole totalmente deserta. Dirigiu por uma Picadilly vazia, cruzou Trafalgar Square em silêncio e estacionou do lado de fora de um palácio de Buckingham sem guardas. No pôr do sol decidiu retornar para Shepperton. Estava quase sem combustível e foi forçado a arrombar um posto de gasolina. No entanto, não havia nenhum policial em patrulha, nem nas delegacias. Ele deixou para trás uma imensa cidade mergulhada na escuridão, onde as únicas luzes eram reflexo de seus faróis.

B passou uma noite agitada, com o rádio mudo ao lado de sua cama. Mas quando ele acordou para outra manhã luminosa sua confiança havia retornado. Após uma dúvida inicial, ele ficou aliviado ao ver que Shepperton ainda estava deserta. A comida no refrigerador havia começado a apodrecer; ele precisava de provisões frescas e uma maneira de cozinhar. Dirigiu até Shepperton, quebrou uma janela do supermercado e juntou várias embalagens de carne enlatada e vegetais, arroz e açúcar. Na loja de ferragens, encontrou um fogão a querosene que levou para casa com uma lata de combustível. A água não saía mais das torneiras, mas ele estimou que a que havia  na caixa d'água duraria uma semana ou mais. Incursões posteriores às lojas locais o supriram com velas, lanternas e pilhas.  

Na semana seguinte B fez várias expedições a Londres. Retornou às casas e apartamentos de seus amigos, mas os encontrou vazios. Invadiu a Scotland Yard e os escritórios dos jornais de Fleet Street na esperança de encontrar alguma explicação para o desaparecimento de toda a população. Por último, entrou nas casas do Parlamento e permaneceu na silenciosa câmara dos Comuns, respirando seu ar estagnado. No entanto não havia nenhuma explicação, em lugar nenhum, do que havia acontecido. Nas ruas da cidade, não viu nem um único gato ou cachorro. Foi apenas quando visitou o zoológico de Londres que ele descobriu que os pássaros ainda permaneciam em suas gaiolas. Eles pareciam deliciados em vê-lo, mas fugiram com gritos famintos quando ele destrancou as grades.

Assim, finalmente ele tinha uma forma de companhia. Durante o mês seguinte, e durante todo o verão, B continuou seus preparativos para sobrevivência. Dirigiu para norte até Birmingham sem ver vivalma, então dirigiu para a costa sul e seguiu a estrada de Bright a Dover. Subindo as colinas, mirou a distante costa da França. Na marina, escolheu um barco  a motor com o tanque cheio de combustível e atravessou o mar calmo, agora livre das embarcações de recreio costumeiras, dos petroleiros e dos ferry-boats que cruzavam o canal. Em Calais, vagou por uma hora por ruas desertas e nas lojas silenciosas escutou em vão telefones que nunca tocavam. Voltou então para o porto e retornou para a Inglaterra.

Quando o verão foi seguido por um outono tépido, B havia estabelecido uma existência prazerosa e confortável para si próprio. Tinha um estoque abundante de comida enlatada, combustível e água com o qual sobreviver ao inverno. O rio era próximo, límpido e livre de qualquer poluição e gasolina era fácil de obter, em quantidades ilimitadas, dos postos e carros estacionados. Na delegacia local, juntou um pequeno arsenal de pistolas e carabinas, para lidar com alguma ameaça inesperada que poderia aparecer.

Mas seu únicos visitantes fora os pássaros, e ele espalhava mancheias de arroz e sementes em seu quintal e nos dos antigos vizinhos. Já havia começado a esquecê-los e Shepperton logo se tornou um extraordinário aviário, cheio de pássaros de diferentes espécies. Assim, o ano terminou pacificamente e B estava pronto para começar seu verdadeiro trabalho.

                                                        *     *     *


                                                               *     *     *

Outros textos de ficção científica neste blogue:














sábado, 14 de abril de 2012

Europa e a ameaça do terceiro mundo: pulsações do desejo - e da falta dele.

Uns tempos atrás, fui (mais ou menos) surpreendido por um vídeo da União Européia - que circulou bastante na internet - que retratava uma Europa mulher e semi-virginal (embora já de certa idade) acossada por três personagens facilmente identificáveis com o Brasil (um crioulo jogador de capoeira), Índia (um espadachim misterioso) e China (um lutador de artes marciais super-cool). E dona Europa lá no meio dessas figuras, senhora de si, dominando a situação ameaçadora. Um vídeo institucional cujo objetivo explícito era incentivar a união da União, cada vez mais desunida pelas diversas crises que a assolam: financeira, política, econômica, militar, institucional e (fica claro no vídeo) ideológica. Talvez nunca antes na história daquele continente (rsr) a Europa tenha compartilhado tanto entre seus membros, ainda que apenas crises. 
Mas o que chama a tenção mesmo é o tom de ameaça do vídeo. Porque nós, terceiro mundo, somos a ameaça. Ameaça pelo crescimento econômico (o vídeo sugere isso), conjugado à crise européia. O resultado disso é um vídeo curiosamente racialista - como aliás quase tudo que a velha Europa produz em termos de discurso social ultimamente (o vídeo pode ser visto aqui). Mas também um discurso explicitamente sexualista: Uma mulher de certa idade - cerca de trinta e poucos anos, uma mulher madura - cercada por homens racialmente diversos dela e entre si (mas todos racialmente  identificáveis: não-brancos, não-europeus) e aparentemente mais jovens. Bombas de testosterona cercando uma Europa aparentemente sem manifestações hormonais quaisquer. Situação no mínimo inusitada: a Europa, que nos fodeu ao longo dos últimos séculos (a brasileiros e latino-americanos em geral, a chineses, indianos e asiáticos em geral), temendo um estupro coletivo por aqueles que foram por ela estuprados ao longo da história. 
Por si só isso já seria interessante: hegemonia e contra-hegemonia no segundo tempo do jogo. Mas tem mais, bem mais. Europa mostra sua cara nesse vídeo curiosamente simbolista - explicitamente simbolista, que lança mão de recursos simbólicos para passar sua mensagem e, nesse ínterim, propaga - como sói acontecer com frequência nesses casos - mais símbolos que os explicitamente desejados. Coisas de uma libido coletiva em crise afetiva que recorre a símbolos arcaicos para expressar sua voz abafada pelas convenções sociais e políticas. E o faz muito bem, por sinal. O resultado é um vídeo recheado de elementos psicanalíticos, para os quais gostaria de oferecer uma análise preliminar aqui. Atentemo-nos para os elementos do vídeo tais como aparecem em ordem cronológica no desenrolar da ação:


 1) Europa é uma mulher passiva, não faz nada; 


2) os homens ameaçantes são todos com evidente apeno sexual: um chinês cool, um indiano 
    misterioso, um brasileiro testosteronado; 


3) Ao ser cercada pelos homens, Europa se auto-replica, criando outras exatamente iguais a 
    ela (veja que o princípio masculino incorpora a diversidade, enquanto que o feminino não 
    - Europa é homogênea); 


4) Europa forma um círculo em volta dos homens (símbolo feminino), que se sentam e 
    perdem sua posição ereta. O indiano embainha sua espada. O sentido sexual aqui é 
    evidente; 


5) a imagem formada é uma fortemente simbólica: um triângulo (princípio masculino) 
   formado pelos homens sentados, envolvido por um círculo, símbolo feminino. O princípio
   masculino no interior do princípio feminino: o símbolo corresponde àquele
   da fecundação; 

    1. uma ausência é conspícua aqui: a da Rússia, único dos BRICs q efetivamente já fodeu diversas vezes com a Europa (militarmente, em especial: ou seja, pela maneira simbolicamente mais masculina possível depois do coito em si mesmo, e associada diretamente a este). A repressão do elemento que evidenciaria a relação simbólica, transformando-a em quase literal, é reveladora.

O princípio masculino, no entanto, é emasculado: Europa necessita ser fecundada - fecundada pela diversidade contida no princípio masculino e que lhe falta - mas apenas em condições de domesticação deste princípio, que no entanto ao ser domesticado perde sua capacidade de movimento, sua virilidade mesma. Temos aqui uma relação de double bind, o duplo vínculo da teoria antropológica e da psicologia da esquizofrenia, seguindo Gregory Bateson: Europa busca o Outro e tem medo dele (Europa os abraça ao replicar-se mas vemos receio em sua atitude); precisa do Outro para fecundá-la mas sob condições que castram o princípio masculino e tornam a fecundação pouco provável; a fecundação é a única ação de Europa que envolve o princípio fecundador formando um círculo em torno dele, mas é uma ação feita a partir da passividade mesma, a partir da replicação desta mesma passividade. 
Europa veste amarelo. A cor, evidentemente, remete à riqueza: a cor do ouro. Mas o amarelo tem uma longa história de ambiguidade na simbologia européia das cores. Na idade média, atores representando um personagem morto em uma peça usualmente vestiam amarelo. Amarela era também a cor da cruz pintada na porta das casas onde havia sido registrada a presença da peste negra; da mesma forma, na frança a porta da casa de um criminoso condenado era pintada de amarelo. Carrascos usavam amarelo na Espanha e durante o jugo nazista da Europa, judeus era obrigados a usar braçadeiras amarelas. Mesmo sendo a cor do ouro - e por extensão da prosperidade - o amarelo tem um significado mais profundo que emerge em associações como na expressão 'yellow journalism' em inglês, equivalente à 'imprensa marrom' da língua portuguesa; e na expressão 'yelow streak', q designa uma pessoa á qual falta coragem: alguém que 'amarela', como também dizemos. Não é portanto surpresa que a cor amarela, que no feng-shui chinês simboliza a estabilidade, a solidez, seja na Europa associada tradicionalmente à mentira, traição, à morte, a ponto de dar o cognome ao personagem do escritor britânico (e racista declarado) Sax Rohmer, criador da expressão 'perigo amarelo' (yellow peril'), usada para designar o 'satânico Dr. Fu Manchu'. Como vemos aqui pela convergência espontânea de significados, é este segundo sentido reprimido que predomina no vídeo, não o sentido de prosperidade, do ouro que cada vez mais escorre pelas mãos de uma Europa incapaz de mantê-lo (ou seja, o sentido explícito do vídeo, presente no enredo do mesmo, de competição comercial metaforizada explicitamente com os três países do terceiro mundo).
Todo o vídeo leva à constatação que Europa precisa do Outro diverso, mas tem medo dele. Mas não vive sem ele. Mas só o aceita se ele for absorvido em seu interior. Mas essa absorção leva à mesma passividade inicial de Europa. Uma situação típica do double bind batesoniano. Curiosamente, isso acontece justamente em um vídeo que busca mostrar a Europa como auto-suficiente, capaz de resolver seus próprios problemas sozinha...
O vídeo foi retirado de circulação acusado de racismo. Mas eu diria que ele não é exatamente racista, mesmo que tente sê-lo - de maneira 'politicamente correta' como é aceitável para racismos europeus, sempre envolvidos em considerações sobre 'diversidade cultural', que é como o racismo 'civilizado' se manifesta na Europa hoje em dia, trocando o termo 'raça' por 'cultura'. Ele é essencialmente um vídeo sobre a impotência européia, onde o personagem Europa, em seu silêncio - ela não emite um som sequer durante o vídeo, como se não fosse capaz de vocalizar sua real situação, colocá-la em palavras - manifesta o oposto: um grito desesperado de socorro expresso em sua incapacidade de mover-se, em sua frigidez, na cessação do movimento e do desejo: na vitória de Tanatos sobre Eros. Ou seja, na morte que se aproxima.
Que a terra lhes seja leve.

Uma noite, por Samuel Beckett (tradução minha)

Ele foi encontrado caído no chão. Ninguém havia sentido sua falta. Ninguém procurava por ele. Uma mulher velha o encontrou. Pra colocar a coisa vagamente. Aconteceu tanto tempo atrás. Ela estava andando por aí procurando flores selvagens. Só as amarelas. Sem olhar mais nada a não ser para elas, ela tropeçou nele caído ali. Ele estava com a cara para baixo e com os braços abertos. Usava um sobretudo apesar da época do ano. Escondida pelo casaco, uma longa fila de botões o fechava de cima abaixo. Botões de todos os formatos e tamanhos. Usadas viradas pra cima, as beiradas do casaco varriam o chão. Isso parece verdade. Perto da cabeça, um chapéu caído no chão, de lado. Ao mesmo tempo sobre sua aba e seu topo. O homem jazia inconspícuo no casaco esverdeado. Apenas a cabeça branca atraía o olhar observando de longe. Será que ela poderia tê-lo visto antes? Andando por aí em algum lugar? Vamos com calma. Ela vestia preto. A barra da saia longa arrastava no chão. Era no fim do dia. Se ela se movesse agora em direção a leste, sua sombra iria na frente dela. Era hora de cuidar das ovelhas. Mas não havia ovelhas. Ela não via nenhuma. Se acontecesse de uma terceira pessoa passar por ali, os únicos corpos que ela veria seriam os deles. Primeiro, aquele da mulher velha em pé. Então, chegando perto, aquele caído no chão. Isso parece verdade. Os campos desertos. A mulher velha vestida de preto, petrificada, horrorizada. O corpo paralisado no chão. O amarelo na extremidade do braço negro. O cabelo branco sobre a grama. O leste naufragando na noite. Vamos com calma. O clima. O céu nublado o dia inteiro, até de noite. A nor-noroeste, perto da borda, o sol finalmente saiu. Chuva? Umas gotinhas, talvez. Umas gotinhas pela manhã, talvez. No presente, para concluir. Aconteceu há tanto tempo atrás. Fechada dentro de casa o dia inteiro, ela sai com o sol. Se apressa para chegar ao campo. Surpresa por não ter visto ninguém no caminho ela anda pra lá e pra cá febrilmente, procurando as flores selvagens. Febrilmente, vendo a noite iminente. Ela nota surpresa a ausência de carneiros, numerosos aqui nesta época do ano. Ela veste negro que passou a usar ainda jovem quando ficou viúva. É para repor a flores do túmulo que ela anda pra lá e pra cá procurando as flores que ele havia amado. Não fosse pela necessidade do amarelo na extremidade do braço negro, não haveria nenhum. Assim, há tão poucas quanto possível. Esta é para ela a terceira surpresa desde que ela saiu. Porque muitas delas crescem aqui nesta época do ano. Sua velha amiga sombra a aborrece. Tanto que ela vira a cara para o sol. Qualquer flor dos lados dela, ela pega num relance. Ela deseja que o pôr do sol termine para poder andar por aí de novo livremente no lusco-fusco. Para aumentar seu desconforto, o esfrega-esfrega familiar da sua longa saia negra na grama. Ela se move com os olhos meio fechados, como se fosse puxada para dentro do seu olhar zangado. Ela pode dizer para si mesma, é muita coisa estranha para uma única noite de março ou abril. Ninguém do lado de fora. Nem um único carneiro. Mal a mal uma flor. Sombra e esfrega-esfrega irritantes. E para o cúmulo de tudo, o choque do seu pé contra um corpo. Acaso. Ninguém havia dado por sua falta. Ninguém o procurava. Negro e verde das roupas se tocando, agora. Perto da cabeça branca, o amarelo das poucas flores colhidas. A velha cara iluminada pelo sol. Como um tableau vivant. A caminho. A partir de agora, tudo está silencioso. Por todo o tempo em que ela não pode se mover. O sol desaparece finalmente, e com ele toda sombra. Toda sombra aqui. Lusco-fusco lentamente sumindo. Noite sem lua ou estrelas. Tudo parece verdade. Mas vamos parar com isso.