Quase trinta anos atrás, na primeira semana de aulas de um dos cursos de graduação que frequentei, conheci na fila da lanchonete Mário Cézar, um calouro de medicina que ao longo do tempo se tornou meu melhor amigo, até sua morte trágica anos depois.
Cézar, que como eu havia cursado física anteriormente, havia mudado de curso porque queria ser clínico geral. Seu ídolo era um seu tio, conhecido clínico geral em nossa cidade e dono de grande reputação na área de semiologia médica. Era capaz, segundo Cézar, de diagnosticar uma doença com incrível precisão a partir de uma entrevista minuciosa e longa com o paciente, depois da qual solicitava os exames necessários para verificar seu diagnóstico. Dificilmente errava.
Quando terminou sua graduação, Cézar me confessou estar decepcionado. Dizia que não havia aprendido praticamente nada de semiologia médica na faculdade. Passou o resto de sua vida se aperfeiçoando por conta própria nisso.
Semiologia médica é um termo que a princípio parece estranho. Junta algo que reconhecemos como parte das ciências humanas - semiologia é a ciência que estuda signos e suas manifestações - com medicina, a qual nos acostumamos a considerar como na vizinhança da biologia.
Isso porque semiologia médica é justamente aquilo que torna a medicina humana - ou antes, que a torna medicina, no sentido hipocrático: a capacidade de perceber na pessoa os indícios da doença. O foco da semiologia médica (e, por extensão, da clínica geral) é a pessoa, não doença. A doença é o objetivo final que se pretende atingir, a partir da atenção minuciosa, detalhada na pessoa, seu corpo e os processos deste.
Desde os tempos em que Cézar foi estudante nos anos 80 - e ainda mais depois sua morte - a tecnologia médica criou muitos mais aparelhos que representam (normalmente de forma visual) a doença. Mais e mais a semiologia médica foi perdendo espaço em uma medicina super-tecnologizada que prometia substituir a capacidade de interpetação humana por meios supostamente objetivos de reconhecimento da doença. Avanços tecnologicos como cintilografia, ressonância magnética, tomografia computatoriada substituiriam, no limite, inclusive os próprios médicos.
O problema é que essa promessa era (e é) de certa forma mal-intencionada. Essa substituição da capacidade médica de interpretar sinais da doença no corpo humano, mesmo que real - e há sérias dúvidas com relação a isso - só seria possível com injções maciças de capital. Cada máquina descrita acima tem altíssimo custo de aquisição, operação e manutenção.
Isso, é claro foi um prato cheio para incrementar ainda mais a transformação da medicina em um negócio altamente lucrativo: médicos ricos (e a maioria dos que estudam medicina vem até hoje de famílias de posses) se transformaram em gigolôs de 'máquinas diagnósticas'.
Apesar de a participação do médico no processo diagnóstico diminuir cada vez mais (sendo crescentemente substituida pela atividade dos operadores das 'máquinas diagnósticas'), por uma questão de deficiência da definição jurídica, o processo continuou a ser descrito como 'atividade médica' - coisa que ele é cada vez menos, tendo-se transformado em um lucrativo ramo empresarial de alta tecnologia.
Isso gerou uma forma de perversão capitalista na atividade médica: hoje em dia, médicos não mais fazem longas consultas. Nem sequer falam ou olham para os pacientes. O móvel disso não é o desinteresse (embora este esteja obviamente presente), mas a ignorância. Médicos simplesmente não sabem mais o que perguntar, não têm idéia do que deveriam observar. Uma consulta de mais de dois ou três minutos seria certamente marcada por um silêncio embaraçoso.
Isso porque o que se chama - erradamente - 'consulta' é pouco mais que um processo de triagem cada vez menos dependente da semiologia médica, cada vez mais burocratizado, cujo objetivo único é, crescentemente, saber a qual máquina ou teste diagnóstico o paciente será encaminhado. 'Médicos' se transformam cada vez mais em empresários - donos das máquinas - ou em burocratas que alimentam a demanda das máquinas, ou em vendedores de seus serviços. Entre uns e outros, a responsabilidade pelos elementos essenciais à atividade diagnóstica fica cada vez mais nas mãos do operador da máquina, normalmente um técnico mal pago e nem de longe tão bem formado quanto deveria para realizar tarefa tão essencial.
A perversão desse processo vem não só da óbvia clivagem de classe, mas da sua submissão a uma lógica da demanda econômica. Imaginem uma cidade do interior do Amazonas, por exemplo, com uns 3, 4 mil habitantes. Nenhum hospital privado jamais compraria máquinas táo caras para atender a tão poucos - e a tão pobres - porque não teria retorno econômico suficiente para justificar sua aquisição, ou manter seu funcionamento, dentro de uma lógica empresarial capitalista. Elas não dariam lucro suficiente. Tampouco Estado algum - seja Brasil, Suíça, Suécia - tem condições reais de comprar e manter conjuntos cada vez mais caros de máquinas diagnósticas em uma quantidade tão grande de municípios pequenos, pobres e isolados como os encontrados no Brasil, país continental com problemas à altura de seu tamanho..
A questão é que isso não é de forma alguma inevitável. 'Máquinas diagnósticas' deveriam servir para subsidiar a atividade diagnóstica de médicos, não substitui-la pelo trabalho dos técnicos operadores destas máquinas. Deveriam ser usadas para aqueles - digamos - dez por cento dos casos em que o exame do paciente pelo médico não é capaz de realizar o diagnóstico. Não para os 90% dos casos em que o 'médico', extremamente mal-formado em semiologia, é incompetente para reconhecer na pessoa o signo como índice de uma doença ou de outro problema qualquer.
Por trás do discurso xenofóbico do CFM - conselho federal de medicina - e de sindicatos médicos, esconde-se assim uma verdade cruel: não são os médicos cubanos que são mal-formados, mas os médicos brasileiros. Quando médicos protestam que não têm condições de trabalhar em locais do interior que 'não têm estrutura', de certa forma estão dizendo a verdade, porque é a isso que eles se referem. A falta de esparadrapo e gaze é para eles irrelevante: seu grande temor, na verdade, é revelar sua monumental ignorância de semiologia médica, resultado de uma formação que privilegiou o negócio e não a pessoa e transformou os médicos em burocratas ou em vendedores de serviços médicos - ou em empresários destes serviços.
Hoje, quando dizemos que 'o médico' fez o diagnóstico de uma doença, usamos a mesma metonímia que usamos quando dizemos que 'a Ford' fez o carro que guiamos. Não foi 'a Ford' que fabricou o carro, mas os milhares de trabalhadores da montadora de onde ele saiu. Não foi 'o médico' que fez o diagnóstico, mas uma miríade de técnicos e outros trabalhadores, desde a fabricação até a operação da máquina diagnóstica utilizada, cuja demanda ele alimentou, cujos serviços ele vendeu.
Da mesma maneira que 'a Ford', 'o médico' se transformou ao longo do tempo e uma entidade metafísica burocrático-gerencial-empresarial, baseada na divisão entre força de trabalho e meios de produção. É essa divisão que o CFM e os sindicatos de médicos tentam desesperadamente manter, por todos os meios inclusive alguns anti-éticos, como o boicote ao programa Mais Médicos através da inscrição fraudulenta nele. Aqueles que o fazem, fazem-no como empresários (e trabalhadores/vendedores de empresas), não como médicos.
Há aí um erro óbvio de classificação jurídica. Estamos tratando aqui com um monopólio que deveria ser submetido às leis anti-truste. Não são sindicatos de profissionais liberais com quais o Estado trata, mas associações patronais das quais também participam os empregados e vendedores autônomos das empresas médicas.
Não estou sugerindo que as máquinas deveriam ser abolidas. Elas são essenciais - como auxiliares do diagnóstico médico, não como suas substitutas. O uso das máquinas diagnósticas deveria ser para tornar a percepção do médico capaz de ir mais além, mas terminou por substituir, progressivamente, a capacidade interpretativa deste. A conivência do ensino de medicina no Brasil com esse processo de transformação da profissão em uma atividade empresarial criou médicos incapazes de exercer realmente a medicina sem subordinarem-se às máquinas. Como em uma distopia da ficção científica, os médicos tornaram-se apêndices das máquinas. Daí o pânico mal disfarçado de médicos ao lhes ser sugerido que trabalhem... sem as máquinas. Apêndices são apêndices. Não sobrevivem sem o organismo que lhes dá a vida (vida profissional, no caso).
Não acredito que o programa Mais Médicos dará certo. Não com médicos brasileiros, pelo menos. Eles são mal-formados demais para trabalhar como médicos de verdade. Eles não o são, em grande medida: são um misto de burocratas e caixeiros-sedentários (uma vez que não viajam...), alimentando a demanda e vendendo produtos de empresas de prestação de serviços médicos. Para caminhar em direção à resolução do dilema da assistência médica para a população pobre do Brasil, será necessário uma profunda intervenção saneadora do Estado na formação dos médicos.
Ela precisa novamente se transformar em uma profissão que lida com pessoas, não com o lucro.
Vivemos aqui uma situação clássica d'O Médico e o Monstro. Da mesma maneira que na história de Stevenson, os dois são a mesma pessoa. É preciso escolher um dos dois - e da mesma maneira que na história original, deixar o poder de escolha nas mãos do Monstro e de seus representantes (CFM e sindicatos) é receita de desastre.