quarta-feira, 17 de julho de 2013

O Dia que o País Ficou Lúcido e Entrou no Século XXI - e Descobriu que o Establishment não Gosta de Lucidez, nem do Novo Século



Definitivamente, o Brasil entrou no século XXI. Uruguai e Bolívia não estão mais sozinhos na América do Sul. Também como nesses países, boa parte da população - e a grande maioria dos analistas - não admite isso.
Por aqui, os grupos organizados na resistência ao novo vão de evangélicos a partidos políticos, curiosamente unidos na tentativa de evitar que o século XXI se instale definitivamente na vida cotidiana das pessoas.
O Brasil finalmente conseguiu o que queria: chegou ao primeiro mundo, reproduzindo aqui os mesmos conflitos hoje vigente nos EUA/Europa: a luta contra o neoliberalismo, chamada nos EUA de 'anti-globalização' e denominada, mais acertadamente, pelos seus militantes de alterglobalização.
O atraso de sua chegada ao Brasil se deve principalmente ao PT, que - num último estrebuchar da política do século passado - conseguiu por uma década convencer a população que era, de fato, diferente dos outros partidos defensores da política neoliberal. Coisa em que ainda há quem acredita, por incrível que pareça, após mais de uma década de provas em contrário. Normal: também em lugares como o Egito pensou-se que haveria alternativas institucionais - lá, o 'islamismo moderado' - ao neoliberalismo e seu reflexo político, chamado (erroneamente, a meu ver) 'nova ordem mundial'.
Curiosamente, Mohamed Morsi, que caiu esses dias atrás após a maior manifestação de massa já vista na história da humanidade, que colocou 17 milhões de pessoas na rua e alterou a face política do país, se comparava a Lula. Se declarava, também como Lula, um moderado, daqueles - também como Lula - que usam o 'mas' como cláusula atenuante: Morsi era 'islâmico' mas moderado, da mesma forma que Lula era 'de esquerda' mas moderado. Ambos eram - certamente devido à sua 'moderação' - apoiados por expressivos setores da elite de seus países.
Mas acabou. Como no resto do planeta, no Brasil o movimento é essencialmente apartidário e mesmo antipartidário (para desespero de cientistas políticos e dos partidos políticos) e identifica - muito acertadamente, aliás - no establishment político como um todo e não nas cliques que o operacionaliza em um determinado momento seu principal inimigo. 'Golpe da direta!' bradam os governistas do 'PT; 'golpe da esquerda!', bradam os governistas do PSDB/DEM/etc. Só isso já indica o desespero do establishment como um todo frente a um movimento que não pode ser cooptado (porque não tem 'lideranças'), que não pode ser comprado (porque luta por coisas concretas e continua lutando até que elas sejam atendidas), que não pode ser esmagado (porque aumenta com a repressão).
O que vemos hoje é uma tentativa orquestrada do establisment político - esse monstro amorfo cuja manifestação político-institucional pode ser chamada 'PTMSDEMB & apêndices' - de recuperar o controle do processo político nacional, que lhes fugiu das mãos. Isso, com auxílio igualmente desesperado da mídia (ela própria atacada nas manifestações, numa demonstração de rara consciência política das massas) e da 'justiça'.
Nos últimos poucos dias, vimos as tropas de choque do establishment - as da PM, as internéticas, as políticas - em ação para tentar acabar com o movimento que colocou em cheque isso que muita gente chama 'democracia representativa', que corresponde à parte visível, à ponta do iceberg d' O Grande Conchavo dos Rabo-Preso, a forma específica do pacto social no Brasil.
Nas últimas semanas o povo se rebelou contra isso. Sim, contra isso. E sim, rebelião.
Rebelião porque esta é a forma de súditos se manifestarem. Não somos cidadãos, somos súditos de um estado imperial. Nossa forma específica de participar da vida pública, ou ao menos uma delas, é a rebelião. Como na Inglaterra dos anos 80-90 e suas rebeliões contra a pool tax, nas quais boa parte de Londres foi posta abaixo para que os súditos do reino fizessem seus governantes sentirem que não estavam brincando e esperavam mudanças imediatas.
E sim, foi por causa disso. Porque este movimento - sim, no singular - é essencialmente (sim, isso mesmo, essencialmente) um movimento moral, não político. O establishment sabe disso; não é à toa que uma campanha de internet contra os anarquistas, e em especial contra o grupo Anonymous, que reúne grupos que organizam as manifestações anti-capitalismo no mundo todo, bate repetidamente neste ponto: chamando-os 'fascistas' por escancararem que há um problema moral sério na vida política atual, que é sua própria existência enquanto tal. O establishment sabe que o problema é ele próprio e sabe que o povo já sabe disso. Daí a virulência do ataque. Também sabe que o povo sabe que os partidos políticos - todos - são parte do establishment e não são confiáveis, daí seu ataque igualmente virulento ao fato de essas manifestações serem organizadas pela internet, sem participação de 'instituições representativas'' - já que é a própria noção de representatividade política que está completamente desacreditada. E isso os apavora.
Lula e seu marqueteiro, que articularam a reação do establishment contra o movimento, sabem disso. Por isso mesmo articulou o establishment em torno do combate à moral, em nome da política. De repente, todo o establishment visível - governo, partidos, redes de TV, jornais, cientistas políticos e outros analistas - começaram em uníssono a cobrar 'coerência' do movimento, a 'denunciar' ameaças de golpe, fascistas infiltrados 'cooptando' os que protestam?
Isso se chama marketing reverso: criar um pavor maior que a rejeição demonstrada. Antes de Lula, outro ilustre representante do establishment - um apresentador de TV chamado Datena - tentou a mesma coisa com o movimento e se deu mal. Lembram no começo da coisa toda, qdo o dito Datena, em seu programa, chamou uma pesquisa telefônica na qual solicitava que as pessoas dessem sua opinião sobre se concordava com as manifestações, mostradas por ele na TV? Pois é, deu 'sim' na cabeça. Ele então muda de tática e troca o texto da psquisa (olha a reversão aí!), por algo como 'você concorda com manifestação com baderna?'. Pois é, deu 'sim' na cabeça de novo.
Lula e seu marqueteiro tentaram o que Datena não conseguiu. E contaram com armas poderosas pra isso, que Datena não tinha: contaram com toda a mídia, além das polícias - além das PMs, a PF e os serviços 'de inteligência' adquiriram a partir daí notoriedade no cenário repressivo. Contou também com os analistas políticos, que passaram a assumir sua posição na linha de frente da força repressiva do establishment.
O ataque foi coordenado, com operações de idêntica natureza em quatro níveis distintos :
1. ao nível político, o discurso do establishment 'exigiu' dos manifestantes 'coerência', separando 'direita' de 'esquerda';
2. ao nível epistemológico, os analistas políticos bradaram contra a 'despolitização das massas' que não sabiam separar reivinsicações tópicas daquelas políticas;
3. ao nível midiático, a Gloriosa Mídia Livre fez das tripoas coração para diferenciar entre ''manifestantes' e 'baderneiros infiltrados' nas manifestações; e finalmente
4. ao nível policial, a separação entre 'baderneirros' e 'manifestantes' passa a ser usada como justificativa da repressão policial.
Não posso deixar de imaginar o sorriso lupino de Michel Foucault ao constatar que o bisturi analítico de (2) serve exatamente aos mesmos propósitos que o cassetete de (4). Aliás, os analistas políticos provavelmente sofreram mais que os outros soldados dessa tropa, imagino. Porque ao menos alguns deles também se preocupavam genuinamente em entender o processo e não apenas em reprimi-lo. E tentativas de compreensão abundaram, muitas delas incrivelmente cômicas, refletindo justamente a falta de capacidade dos analistas de abrirem mão de suas categorias de análise frente a uma realidade nova que se recusa a se reduzir a elas.
Assim, vemos marxistas da velha guarda afirmando que as manifestações foram inteiramente inócuas, não tendo nenhuma significação - uma opinião que reflete a meu ver simplesmente a fossilidade intelectual do analista, incapaz de entender o que tem pela frente. Vemos analistas conservadores incapazes de ver nas manifestações nada além de manifestações de ódio, uma interpretação que certamente não contou com o benefício da observação direta, nas ruas e que reflete de maneira inconsciente (creio) a campanha midiática contra o movimento.
O ataque como um todo tinha um objetivo claro: dividir, esquartejar. Do analítico ao policial, do político ao midiático, o objetivo era um só: separar o joio do trigo, ainda que as opiniões não coincidissem sobre qual era qual, exatamente. Esse fato é por si mesma revelador: mais importante que definir os mocinhos e os bandidos, o establishment se uniu para manter o enredo - com mocinhos e bandidos (e a promessa de um final feliz). E os ataques se concentraram, claro, naqueles que denunciavam explicitamente a artificialidade do roteiro: os anarquistas.
Na mesma semana - praticamente nos mesmos dias - (a) a PF invadiu (ilegalmente, aliás, comme il fault: sem mandado)  a sede da Federação Anarquista Gaúcha em Porto Alegre; (b) petistas iniciaram na internet uma campanha contra o Anonymous (que não é exatamente um grupo mas uma estratégia de luta de vários grupos autonomistas mundo afora), tachando-o de... fascista, justamente por (entre outras coisas) escancarar que a crise atual não é política mas moral, com todo o establishment envolvido; (c) policiais passam a se infiltrar nas passeatas, usando máscaras de Guy Fawlkes (símbolo mundial do movimento da alterglobalização desde os anos 90) e destruindo lojas e prédios públicos, na esperança de serem tomados por membros do Black Bloc, espécie de tropa de choque dos manifestantes da alterglobalização, que se especializa na ação direta como forma de proteção dos manifestantes quando atacados pela polícia (e que nunca atacam sem antes terem sido atacados); e finalmente (d) a mídia passa a veicular uma campanha de terror relacionada às manifestações, manipulando informações para fazer crer a seus espectadores/leitores/ouvintes que a fortíssima repressão policial que se seguiu, incrementada, a esse ataque era justificada por atos de vandalismo - que eram frequentemente criados pela própria polícia, ou que eram na verdade reações à repressão policial.
É preciso deixar claro aqui que os quatro níveis do contra-ataque do establishment que mencionei acima não estão em pé de igualdade entre si: política, mídia e análise articularam-se em torno da polícia, a quem coube a ação concreta de repressão direta que os ouros níveis apenas sugeriram ou propiciaram. E a polícia - em especial a PM - se articulou nacionalmente em uma mesma estratégia repressiva, sem distinção de partido ou ideologia: a PM de MInas Gerais e de São Paulo, estados governados pelo PSDB,  reprimiu usando as mesmas táticas das PMs do Distrito Federal e da Bahia, por exemplo, governados pelo PT. Da mesma forma que Record e Globo manipularam igualmente imagens de manifestações para insinuar que 'vândalos infiltrados' entre manifestantes atacaram pobres PMs de batalhões de choque pelo país inteiro, provocando deles reações inevitáveis. Da mesma forma que analistas políticos 'denunciaram', alarmados, golpes fascistas ou comunistas (a depender da ideologia do denunciante) que estariam sendo armados pelos 'organizadores secretos' das manifestações.
Por duas semanas o establishment mostrou a sua cara, una e coesa, por detrás do capacete e do escudo de sua encarnação concreta, o soldado do batalhão de choque da PM. Talvez a manifestação mais simbolicamente significativa tenha sido uma das mensagens da campanha de difamação do PT contra os movimentos autônomos agrupados sob o nome Anonymous: ao mesmo tempo em que os acusam de fascismo, por revelar a profunda crise moral das instituições políticas da atualidade, a mensagem (não guardei seu texto, reproduzo de memória) afirma sobre suas principais reivindicações, que elas não têm cabimento "porque são contra o artigo 'x' da lei 'y' ", num retrato tristemente revelador da condição do establishment 'de esquerda' no Brasil atual, reduzido a um legalismo institucionalista que em nada lembra as lutas sociais que um dia, há décadas atrás, o alçou à posição na qual se encontra hoje.
Frente ao ataque, o movimento fez algo inesperado (ao menos para os representantes do establishment): ele se dividiu... para conquistar. O movimento simplesmente comprou as provocações do establishment e dividiu-se. Mas não nas velhas e conhecidas linhas aplicáveis a movimentos sociais até então. Ele se dividiu em grupos de manifestações por reivindicações concretas palpáveis e vivemos durante duas semanas uma verdadeira intifada de manifestações, certamente menos magnificentes que as gigantescas manifestações que principiaram o movimento, mas com efeito igualmente devastador. Manifestantes pelo país afora ocuparam dezenas de câmaras municipais (uma espécie de reintegração de posse das casas do povo), sitiaram prefeitos corruptos em suas prefeituras, acamparam na porta de governadores e prefeitos. Atacaram partidos políticos e veículos da imprensa, ocuparam o congresso nacional, enfrentaram e em alguns lugares surraram a polícia, vários de cujos trabalhadores começaram a defecção para o lado dos manifestantes, expondo-se inclusive a castigos disciplinares. E quando se uniram em manifestações comuns produziram as maiores passeatas já vistas nesse país desde os anos 80, colocando mais de um milhão de pessoas na rua no Rio de Janeiro e acendendo a luz vermelha dentro do PT, partido cuja força sempre veio do aparelhamento dos movimentos sociais.   
Não creio que muitos tenham notado a coincidência temporal entre dois eventos aparentemente isolados que se deram durante estes dias, mas que adquirem significação - e uma significação particularmente irônica - quando confrontados um com o outro. O primeiro foi o chamado de Lula à militância petista para que tomasse as ruas, com um discurso alarmista contra uma suposta 'virada fascista da massa', exemplificada segundo ele (e segundo o coro de analistas políticos que o repetiram) pela rejeição da participação de militantes e partidos 'de esquerda' nas manifestações. O outro evento foi um 'manifesto à nação' lançado por um general de farda de flanela, conclamando a população a se unir contra o 'golpe comunista' que estaria sendo preparado pelo governo petista.
Colocados frente à frente os dois eventos se revelam um ao outro, não apenas em suas intenções instrumentais, manipuladoras, mas principalmente em sua incapacidade não só de entender mas principalmente de se comunicar com o novo movimento. De um lado um manifesto militar cuja linguagem é ininteligível mesmo a leitores cultos sem o auxílio de um dicionário de termos e expressões fora de uso corrente. Do outro, o espetáculo melancólico de um Lula tentando 'conclamar as massas' com um discurso sindicalista dos anos 80, claramente sem eco popular. Dois discursos especulares, que já foram em épocas passadas discursos de alto potencial comunicativo e que hoje se reduzem a linguagens-código compreendidas apenas pela caserna e pela militância instrumentalizada. Dois ecos do passado.
As imagens tristemente vazias do 'dia nacional de lutas' organizado pelo braço sindical do establishment e propagandeadas com estardalhaço pela Gloriosa Midia Livre (que fez exatamente o contrário do que tinha feito até então com as manifestações do movimento, inflacionando o número de manifestantes nas passeatas sindicais);  e da 'manifestação pela família' na Candelária, Rio de Janeiro (que parece ter contado com exatas 26 pessoas) estão aí para confirmar: nem uns nem outros são capazes de se fazer entender pela multidão. Sua crise é essencialmente hermenêutica, aquela que se abate sobre discursos que ficaram inexoravelmente ancorados no passado, prêsa de um mundo social - a base dos discursos, afinal de contas - que não existe mais.
Pois é. Aconteceu que naqueles dias de luta, a investida analítico-repressiva do establishment virou-se contra seus criadores. Ao se fragmentar em manifestações distintas, o movimento incentivou outros vários grupos de interesse a se manifestarem abertamente: médicos, policiais federais, empresários do transporte de carga (estes by proxy, através de seus empregados caminhoneiros), latifundiários tomaram também as ruas e estradas do país. Este é provavelmente o maior dano que se poderia causar ao establishment cuja estratégia operacional é baseada na indistinção, na confusão, no mélange. Este tropo discursivo, figura de linguagem central das narrativas sobre nação/povo/país brasileiros - que se espraia desde o 'tudo junto e misturado' dos programas da mídia até o 'governo para todos os brasileiros' do Planalto - foi momentaneamente suspenso, deixando entrever o establishment em toda sua obscura resplandecência: sindicatos e 'movimentos sociais' oficialistas, empresários, elites profissionais, políticas, jurídicas e do serviço público se revelaram abertamente num espetáculo grotesco que usualmente se esconde sob o manto da negociação parlamentar-palaciana, longe dos olhos incômodos do público.
Frente ao fortalecimento do movimento a face política do establishment encena um recuo estratégico, cedendo ao movimento em algumas de suas primeiras reivindicações, abaixando o preço das passagens e acenando com reformas políticas e com a promessa de atender as reivindicações dos movimentos sociais 'tradicionais' ainda existentes no Brasil: o movimento Indígena e o movimento camponês.  Instigados pelo que parece ter sido sentido como uma traição, outros componentes do establishment 'ganharam as ruas', com reflexos evidentes para o próprio movimento em termos identitários: ficou facil saber quem são o 'nós' e quem são o 'eles' depois disso. Ficou também evidente que mesmo os grupos que formam o establishment não acreditam mais na capacidade de as instituições políticas realizarem seus interesses às escondidas - o que se denomina usualmente 'sistema representativo'. O que é, evidentemente, compreensível: uma vez que as instituições políticas insinuam atender reivindicações populares, elas deixam automaticamente de atender aos interesses das elites que compõem o establishment.
Os eventos dos últimos dias revelaram também o calcanhar de Aquiles do establishment: aqueles que tanto bradaram por 'coerência' quando o movimento ganhou as ruas se revelaram incapazes eles mesmos dessa coerência. E isso tem-se visto, exemplarmente, nesses últimos dias: no mesmo dia em que a chefe do executivo recebe Indígenas em campanha contra um projeto de lei que pretende submeter o processo administrativo de demarcação de Terras Indígenas ao congresso nacional, o chefe deste mesmo congresso coloca o projeto na pauta de votação em regime de urgência - por pressão dos latifundiários. Em menos de 24 horas o governo federal volta atrás sobre trazer médicos cubanos para tentar salvatar algo da catástrofe em que se transformou a saúde pública brasileira - por pressão dos médicos. Ao mesmo tempo a popularidade da presidente despenca vertiginosamente, deixando entrever a possibilidade de a concertação vetero-conservadora que a mantém no poder se reagrupar em torno de uma alternativa neo-conservadora capitaneada por Marina Silva e seu novo partido, que se coloca como o novo campeão do capitalismo verde.
Sentindo a mudança dos ventos, Marina corteja o setor mais reacionário da atual clique governamental do establishment, a bancada de representantes evangélicos - o que, curiosamente, é 'denunciado' por petistas que, em um delírio esquizofrênico, parecem ignorar que os mesmos fazem parte de sua própria clique governista. Caso seja bem-sucedida, sua concertação reunirá sob a mesma clique grupos de empresários religiosos,  industriais e agro-empresários, junto com setores expressivos das elites profissionais, políticas, jurídicas e do serviço público, acobertados por uma nova versão do discurso da indiferenciação e da mélange que - eles esperam - seja capaz de novamente cativar o povo a participar dos rituais de legitimação institucional do establishment.
Por sua vez, Dilma Rousseff tenta desesperadamente recuperar a capacidade de seduzir a multidão a acreditar na mágica das instituições. Não acredito que aconteça. Ao cobrar do movimento uma coerência que ela própria não tinha, esta configuração específica do establishment parece fadada ao ocaso e ao esquecimento. Justamente - aqui volto à análise feita pelos grupos que se reúnem sob a identidade de 'Anonymous', algumas semanas atrás - porque a crítica do movimento (que se tornou a crítica da consciência nacional nas últimas semanas) ao establishment é moral. E uma coisa é regra em abordagens morais: o valor de um enunciado qualquer é diretamente proporcional ao caráter moral daquele que o enuncia. Em bom português: para se cobrar algo, é preciso ter moral para tanto. E neste pormenor a clique que opera presentemente o establishment está em falta. Presidente, governadores, prefeitos, parlamentares, etc, etc - nada disso convence mais, justamente porque a estratégia escolhida para esvaziar o movimento expôs, em toda sua nudez, a amoralidade de sua concertação. E isso é algo que 'democracias representativas' necessitam esconder a todo custo.
Claro, a amoralidade é uma característica da vida política - Maquiavel já deixou isso claro centenas de anos atrás. Mas a mágica do discurso da nação/país/povo consiste justamente em - entre outras coisas - esconder esse aspecto absolutamente essencial da vida política. E certamente ela se estende a toda a face política do establishment - o PTMSDEMB & apêndices. Mas a presidência da república tem um caráter especial nesse processo. Pontifex Maximus da concertação política do establishment (que inclui também a oposição, claro), a presidência brasileira é algo similar ao Rei da Floresta da mitologia antiga: sua conexão telúrica de certa forma garante que tudo vá bem na sociedade política institucional. Quando esta conexão (que é com o povo/país/nação encarnados, e é vista como uma conexão visceral com a brasilidade - Lula foi o exemplo vivo disso) é rompida, a ameaça paira sobre todo o establishment. E é necessário um novo soberano que garanta essa conexão com a Terra Brasilis mesma.
Se será ou não Marina Silva a desafiar Dilma e derrotá-la, se tornando a nova soberana - essa é uma questão menor, me parece.Aparentemente o establishment já se acalmou e voltou à sua 'normalidade'. Demandas foram canalizadas para canais institucionais que - como sói acontecer com eles - não funcionam, nunca funcionaram e não tem perspectiva de funcionar algum dia. Ninguém espera, por exemplo, que o congresso nacional, uma espécie de autarquia formada por diferentes grupos - boa parte deles criminosos, de uma ou de outra forma - que apenas defendem seus próprios interesses, vá reformar a si mesmo. Alheios a esta percepção por parte da consciência nacional, políticos parecem ter-se convencido que tudo está como dantes no quartel de Abrantes.
Nada mais enganoso, na minha opinião. Creio que para tornar clara de onde vem esta opinião seria necessário explicar como juntar coisas absolutamente díspares e tirar delas algum significado. Mas não sei fazer isso; isso pode ser mostrado, mas explicações serão sempre, desconfio, ex post facto: feitas sob encomenda para justificar algo que já passou e portanto suspeitas como explicação (embora produza-se boas interpretações assim, concedo). Seria como explicar os sabores do vento ou a sinfonia das cores, coisas que quem experimentou sabe como é mas dificilmente tem palavras para falar sobre. Afinal, o que parece haver de comum entre torcedores estraçalhando um juiz de futebol em campo, no Nordeste; trabalhadores bloqueando a via de acesso ao sítio de obras de Belo Monte para cobrar indenização de impacto ambiental/social não paga; manifestantes ocupando câmaras de vereadores por todo o país; a opinião pública que não abre mão de saber que político ou juiz viajou em que avião da FAB para onde, fazendo o que e gastando quanto de nosso dinheiro público. Como explicar o esvaziamento tanto das manifestações dos sindicatos pelegos quanto a 'marcha pela família'  de alguns dias atrás, ambos caricaturas grotescas de seus ancestrais na história do país, simulacros que simplesmente deram errado, incapazes de copiar eficazmente o modelo?
Na minha opinião, isso que está obviamente sendo encarado pelo establishment como a derrocada do movimento não é mais que um movimento esperado, uma certa alternância entre sístole e diástole, dois momentos e um mesmo processo. Que no contexto atual se afigura cada vez mais como a calmaria que antecede a tempestade, dado o evidente esquecimento por parte dos políticos (e outros agentes do establishment) de que há poucos, pouquíssimos dias atrás estavam todos com a faca no pescoço. E isso é uma coisa ruim de se esquecer, especialmente quando a faca, mesmo não sendo mais íntima de sua jugular, ainda está desembainhada.