Definitivamente,
o Brasil entrou no século XXI. Uruguai e Bolívia não estão mais sozinhos na
América do Sul. Também como nesses países, boa parte da população - e a grande
maioria dos analistas - não admite isso.
Por aqui, os
grupos organizados na resistência ao novo vão de evangélicos a partidos
políticos, curiosamente unidos na tentativa de evitar que o século XXI se
instale definitivamente na vida cotidiana das pessoas.
O Brasil
finalmente conseguiu o que queria: chegou ao primeiro mundo, reproduzindo aqui
os mesmos conflitos hoje vigente nos EUA/Europa: a luta contra o
neoliberalismo, chamada nos EUA de 'anti-globalização' e denominada, mais
acertadamente, pelos seus militantes de alterglobalização.
O atraso de sua
chegada ao Brasil se deve principalmente ao PT, que - num último estrebuchar da
política do século passado - conseguiu por uma década convencer a população que
era, de fato, diferente dos outros partidos defensores da política neoliberal.
Coisa em que ainda há quem acredita, por incrível que pareça, após mais de uma
década de provas em contrário. Normal: também em lugares como o Egito pensou-se
que haveria alternativas institucionais - lá, o 'islamismo moderado' - ao
neoliberalismo e seu reflexo político, chamado (erroneamente, a meu ver) 'nova
ordem mundial'.
Curiosamente,
Mohamed Morsi, que caiu esses dias atrás após a maior manifestação de massa já
vista na história da humanidade, que colocou 17 milhões de pessoas na rua e alterou
a face política do país, se comparava a Lula. Se declarava, também como Lula,
um moderado, daqueles - também como Lula - que usam o 'mas' como cláusula atenuante:
Morsi era 'islâmico' mas moderado, da mesma forma que Lula era 'de esquerda'
mas moderado. Ambos eram - certamente devido à sua 'moderação' - apoiados por
expressivos setores da elite de seus países.
Mas acabou. Como
no resto do planeta, no Brasil o movimento é essencialmente apartidário e mesmo
antipartidário (para desespero de cientistas políticos e dos partidos
políticos) e identifica - muito acertadamente, aliás - no establishment político
como um todo e não nas cliques que o operacionaliza em um determinado momento
seu principal inimigo. 'Golpe da direta!' bradam os governistas do 'PT; 'golpe
da esquerda!', bradam os governistas do PSDB/DEM/etc. Só isso já indica o
desespero do establishment como um todo frente a um movimento que não pode ser
cooptado (porque não tem 'lideranças'), que não pode ser comprado (porque luta
por coisas concretas e continua lutando até que elas sejam atendidas), que não
pode ser esmagado (porque aumenta com a repressão).
O que vemos hoje
é uma tentativa orquestrada do establisment político - esse monstro amorfo cuja
manifestação político-institucional pode ser chamada 'PTMSDEMB & apêndices'
- de recuperar o controle do processo político nacional, que lhes fugiu das
mãos. Isso, com auxílio igualmente desesperado da mídia (ela própria atacada
nas manifestações, numa demonstração de rara consciência política das massas) e
da 'justiça'.
Nos últimos poucos
dias, vimos as tropas de choque do establishment - as da PM, as internéticas,
as políticas - em ação para tentar acabar com o movimento que colocou em cheque
isso que muita gente chama 'democracia representativa', que corresponde à parte
visível, à ponta do iceberg d' O Grande Conchavo dos Rabo-Preso, a forma
específica do pacto social no Brasil.
Nas últimas
semanas o povo se rebelou contra isso. Sim, contra isso. E sim, rebelião.
Rebelião porque
esta é a forma de súditos se manifestarem. Não somos cidadãos, somos súditos de
um estado imperial. Nossa forma específica de participar da vida pública, ou ao
menos uma delas, é a rebelião. Como na Inglaterra dos anos 80-90 e suas
rebeliões contra a pool tax, nas quais boa parte de Londres foi posta abaixo
para que os súditos do reino fizessem seus governantes sentirem que não estavam
brincando e esperavam mudanças imediatas.
E sim, foi por
causa disso. Porque este movimento - sim, no singular - é essencialmente (sim,
isso mesmo, essencialmente) um movimento moral, não político. O establishment
sabe disso; não é à toa que uma campanha de internet contra os anarquistas, e
em especial contra o grupo Anonymous, que reúne grupos que organizam as
manifestações anti-capitalismo no mundo todo, bate repetidamente neste ponto:
chamando-os 'fascistas' por escancararem que há um problema moral sério na vida
política atual, que é sua própria existência enquanto tal. O establishment sabe
que o problema é ele próprio e sabe que o povo já sabe disso. Daí a virulência
do ataque. Também sabe que o povo sabe que os partidos políticos - todos - são
parte do establishment e não são confiáveis, daí seu ataque igualmente
virulento ao fato de essas manifestações serem organizadas pela internet, sem
participação de 'instituições representativas'' - já que é a própria noção de
representatividade política que está completamente desacreditada. E isso os
apavora.
Lula e seu marqueteiro,
que articularam a reação do establishment contra o movimento, sabem disso. Por
isso mesmo articulou o establishment em torno do combate à moral, em nome da
política. De repente, todo o establishment visível - governo, partidos, redes
de TV, jornais, cientistas políticos e outros analistas - começaram em uníssono
a cobrar 'coerência' do movimento, a 'denunciar' ameaças de golpe, fascistas
infiltrados 'cooptando' os que protestam?
Isso se chama
marketing reverso: criar um pavor maior que a rejeição demonstrada. Antes de
Lula, outro ilustre representante do establishment - um apresentador de TV
chamado Datena - tentou a mesma coisa com o movimento e se deu mal. Lembram no
começo da coisa toda, qdo o dito Datena, em seu programa, chamou uma pesquisa
telefônica na qual solicitava que as pessoas dessem sua opinião sobre se concordava
com as manifestações, mostradas por ele na TV? Pois é, deu 'sim' na cabeça. Ele
então muda de tática e troca o texto da psquisa (olha a reversão aí!), por algo
como 'você concorda com manifestação com baderna?'. Pois é, deu 'sim' na cabeça
de novo.
Lula e seu marqueteiro
tentaram o que Datena não conseguiu. E contaram com armas poderosas pra isso,
que Datena não tinha: contaram com toda a mídia, além das polícias - além das
PMs, a PF e os serviços 'de inteligência' adquiriram a partir daí notoriedade
no cenário repressivo. Contou também com os analistas políticos, que passaram a
assumir sua posição na linha de frente da força repressiva do establishment.
O ataque foi
coordenado, com operações de idêntica natureza em quatro níveis distintos :
1. ao nível
político, o discurso do establishment 'exigiu' dos manifestantes 'coerência',
separando 'direita' de 'esquerda';
2. ao nível epistemológico,
os analistas políticos bradaram contra a 'despolitização das massas' que não
sabiam separar reivinsicações tópicas daquelas políticas;
3. ao nível
midiático, a Gloriosa Mídia Livre fez das tripoas coração para diferenciar
entre ''manifestantes' e 'baderneiros infiltrados' nas manifestações; e
finalmente
4. ao nível
policial, a separação entre 'baderneirros' e 'manifestantes' passa a ser usada
como justificativa da repressão policial.
Não posso deixar
de imaginar o sorriso lupino de Michel Foucault ao constatar que o bisturi analítico
de (2) serve exatamente aos mesmos propósitos que o cassetete de (4). Aliás, os
analistas políticos provavelmente sofreram mais que os outros soldados dessa
tropa, imagino. Porque ao menos alguns deles também se preocupavam genuinamente
em entender o processo e não apenas em reprimi-lo. E tentativas de compreensão
abundaram, muitas delas incrivelmente cômicas, refletindo justamente a falta de
capacidade dos analistas de abrirem mão de suas categorias de análise frente a uma
realidade nova que se recusa a se reduzir a elas.
Assim, vemos
marxistas da velha guarda afirmando que as manifestações foram inteiramente
inócuas, não tendo nenhuma significação - uma opinião que reflete a meu ver
simplesmente a fossilidade intelectual do analista, incapaz de entender o que
tem pela frente. Vemos analistas conservadores incapazes de ver nas
manifestações nada além de manifestações de ódio, uma interpretação que
certamente não contou com o benefício da observação direta, nas ruas e que
reflete de maneira inconsciente (creio) a campanha midiática contra o movimento.
O ataque como um
todo tinha um objetivo claro: dividir, esquartejar. Do analítico ao policial,
do político ao midiático, o objetivo era um só: separar o joio do trigo, ainda
que as opiniões não coincidissem sobre qual era qual, exatamente. Esse fato é
por si mesma revelador: mais importante que definir os mocinhos e os bandidos,
o establishment se uniu para manter o enredo - com mocinhos e bandidos (e a
promessa de um final feliz). E os ataques se concentraram, claro, naqueles que
denunciavam explicitamente a artificialidade do roteiro: os anarquistas.
Na mesma semana
- praticamente nos mesmos dias - (a) a PF invadiu (ilegalmente, aliás, comme il
fault: sem mandado) a sede da Federação
Anarquista Gaúcha em Porto Alegre; (b) petistas iniciaram na internet uma
campanha contra o Anonymous (que não é exatamente um grupo mas uma estratégia
de luta de vários grupos autonomistas mundo afora), tachando-o de... fascista,
justamente por (entre outras coisas) escancarar que a crise atual não é
política mas moral, com todo o establishment envolvido; (c) policiais passam a
se infiltrar nas passeatas, usando máscaras de Guy Fawlkes (símbolo mundial do
movimento da alterglobalização desde os anos 90) e destruindo lojas e prédios
públicos, na esperança de serem tomados por membros do Black Bloc, espécie de
tropa de choque dos manifestantes da alterglobalização, que se especializa na
ação direta como forma de proteção dos manifestantes quando atacados pela
polícia (e que nunca atacam sem antes terem sido atacados); e finalmente (d) a
mídia passa a veicular uma campanha de terror relacionada às manifestações,
manipulando informações para fazer crer a seus espectadores/leitores/ouvintes
que a fortíssima repressão policial que se seguiu, incrementada, a esse ataque
era justificada por atos de vandalismo - que eram frequentemente criados pela
própria polícia, ou que eram na verdade reações à repressão policial.
É preciso deixar
claro aqui que os quatro níveis do contra-ataque do establishment que mencionei
acima não estão em pé de igualdade entre si: política, mídia e análise
articularam-se em torno da polícia, a quem coube a ação concreta de repressão
direta que os ouros níveis apenas sugeriram ou propiciaram. E a polícia - em
especial a PM - se articulou nacionalmente em uma mesma estratégia repressiva,
sem distinção de partido ou ideologia: a PM de MInas Gerais e de São Paulo,
estados governados pelo PSDB, reprimiu
usando as mesmas táticas das PMs do Distrito Federal e da Bahia, por exemplo,
governados pelo PT. Da mesma forma que Record e Globo manipularam igualmente
imagens de manifestações para insinuar que 'vândalos infiltrados' entre manifestantes
atacaram pobres PMs de batalhões de choque pelo país inteiro, provocando deles
reações inevitáveis. Da mesma forma que analistas políticos 'denunciaram',
alarmados, golpes fascistas ou comunistas (a depender da ideologia do
denunciante) que estariam sendo armados pelos 'organizadores secretos' das
manifestações.
Por duas semanas
o establishment mostrou a sua cara, una e coesa, por detrás do capacete e do
escudo de sua encarnação concreta, o soldado do batalhão de choque da PM.
Talvez a manifestação mais simbolicamente significativa tenha sido uma das
mensagens da campanha de difamação do PT contra os movimentos autônomos
agrupados sob o nome Anonymous: ao mesmo tempo em que os acusam de fascismo,
por revelar a profunda crise moral das instituições políticas da atualidade, a
mensagem (não guardei seu texto, reproduzo de memória) afirma sobre suas
principais reivindicações, que elas não têm cabimento "porque são contra o
artigo 'x' da lei 'y' ", num retrato tristemente revelador da condição do
establishment 'de esquerda' no Brasil atual, reduzido a um legalismo
institucionalista que em nada lembra as lutas sociais que um dia, há décadas
atrás, o alçou à posição na qual se encontra hoje.
Frente ao
ataque, o movimento fez algo inesperado (ao menos para os representantes do
establishment): ele se dividiu... para conquistar. O movimento simplesmente
comprou as provocações do establishment e dividiu-se. Mas não nas velhas e
conhecidas linhas aplicáveis a movimentos sociais até então. Ele se dividiu em
grupos de manifestações por reivindicações concretas palpáveis e vivemos
durante duas semanas uma verdadeira intifada de manifestações, certamente menos
magnificentes que as gigantescas manifestações que principiaram o movimento,
mas com efeito igualmente devastador. Manifestantes pelo país afora ocuparam
dezenas de câmaras municipais (uma espécie de reintegração de posse das casas
do povo), sitiaram prefeitos corruptos em suas prefeituras, acamparam na porta
de governadores e prefeitos. Atacaram partidos políticos e veículos da
imprensa, ocuparam o congresso nacional, enfrentaram e em alguns lugares
surraram a polícia, vários de cujos trabalhadores começaram a defecção para o
lado dos manifestantes, expondo-se inclusive a castigos disciplinares. E quando
se uniram em manifestações comuns produziram as maiores passeatas já vistas
nesse país desde os anos 80, colocando mais de um milhão de pessoas na rua no
Rio de Janeiro e acendendo a luz vermelha dentro do PT, partido cuja força
sempre veio do aparelhamento dos movimentos sociais.
Não creio que muitos
tenham notado a coincidência temporal entre dois eventos aparentemente isolados
que se deram durante estes dias, mas que adquirem significação - e uma
significação particularmente irônica - quando confrontados um com o outro. O
primeiro foi o chamado de Lula à militância petista para que tomasse as ruas,
com um discurso alarmista contra uma suposta 'virada fascista da massa',
exemplificada segundo ele (e segundo o coro de analistas políticos que o
repetiram) pela rejeição da participação de militantes e partidos 'de esquerda'
nas manifestações. O outro evento foi um 'manifesto à nação' lançado por um
general de farda de flanela, conclamando a população a se unir contra o 'golpe
comunista' que estaria sendo preparado pelo governo petista.
Colocados frente
à frente os dois eventos se revelam um ao outro, não apenas em suas intenções
instrumentais, manipuladoras, mas principalmente em sua incapacidade não só de
entender mas principalmente de se comunicar com o novo movimento. De um lado um
manifesto militar cuja linguagem é ininteligível mesmo a leitores cultos sem o
auxílio de um dicionário de termos e expressões fora de uso corrente. Do outro,
o espetáculo melancólico de um Lula tentando 'conclamar as massas' com um
discurso sindicalista dos anos 80, claramente sem eco popular. Dois discursos especulares,
que já foram em épocas passadas discursos de alto potencial comunicativo e que
hoje se reduzem a linguagens-código compreendidas apenas pela caserna e pela militância
instrumentalizada. Dois ecos do passado.
As imagens
tristemente vazias do 'dia nacional de lutas' organizado pelo braço sindical do
establishment e propagandeadas com estardalhaço pela Gloriosa Midia Livre (que
fez exatamente o contrário do que tinha feito até então com as manifestações do
movimento, inflacionando o número de manifestantes nas passeatas sindicais); e da 'manifestação pela família' na Candelária,
Rio de Janeiro (que parece ter contado com exatas 26 pessoas) estão aí para
confirmar: nem uns nem outros são capazes de se fazer entender pela multidão.
Sua crise é essencialmente hermenêutica, aquela que se abate sobre discursos
que ficaram inexoravelmente ancorados no passado, prêsa de um mundo social - a
base dos discursos, afinal de contas - que não existe mais.
Pois é. Aconteceu
que naqueles dias de luta, a investida analítico-repressiva do establishment
virou-se contra seus criadores. Ao se fragmentar em manifestações distintas, o
movimento incentivou outros vários grupos de interesse a se manifestarem
abertamente: médicos, policiais federais, empresários do transporte de carga
(estes by proxy, através de seus empregados caminhoneiros), latifundiários
tomaram também as ruas e estradas do país. Este é provavelmente o maior dano
que se poderia causar ao establishment cuja estratégia operacional é baseada na
indistinção, na confusão, no mélange. Este tropo discursivo, figura de
linguagem central das narrativas sobre nação/povo/país brasileiros - que se
espraia desde o 'tudo junto e misturado' dos programas da mídia até o 'governo
para todos os brasileiros' do Planalto - foi momentaneamente suspenso, deixando
entrever o establishment em toda sua obscura resplandecência: sindicatos e
'movimentos sociais' oficialistas, empresários, elites profissionais, políticas,
jurídicas e do serviço público se revelaram abertamente num espetáculo grotesco
que usualmente se esconde sob o manto da negociação parlamentar-palaciana,
longe dos olhos incômodos do público.
Frente ao
fortalecimento do movimento a face política do establishment encena um recuo
estratégico, cedendo ao movimento em algumas de suas primeiras reivindicações,
abaixando o preço das passagens e acenando com reformas políticas e com a
promessa de atender as reivindicações dos movimentos sociais 'tradicionais' ainda
existentes no Brasil: o movimento Indígena e o movimento camponês. Instigados pelo que parece ter sido sentido
como uma traição, outros componentes do establishment 'ganharam as ruas', com
reflexos evidentes para o próprio movimento em termos identitários: ficou facil
saber quem são o 'nós' e quem são o 'eles' depois disso. Ficou também evidente
que mesmo os grupos que formam o establishment não acreditam mais na capacidade
de as instituições políticas realizarem seus interesses às escondidas - o que
se denomina usualmente 'sistema representativo'. O que é, evidentemente,
compreensível: uma vez que as instituições políticas insinuam atender
reivindicações populares, elas deixam automaticamente de atender aos interesses
das elites que compõem o establishment.
Os eventos dos
últimos dias revelaram também o calcanhar de Aquiles do establishment: aqueles
que tanto bradaram por 'coerência' quando o movimento ganhou as ruas se
revelaram incapazes eles mesmos dessa coerência. E isso tem-se visto, exemplarmente,
nesses últimos dias: no mesmo dia em que a chefe do executivo recebe Indígenas em
campanha contra um projeto de lei que pretende submeter o processo
administrativo de demarcação de Terras Indígenas ao congresso nacional, o chefe
deste mesmo congresso coloca o projeto na pauta de votação em regime de
urgência - por pressão dos latifundiários. Em menos de 24 horas o governo
federal volta atrás sobre trazer médicos cubanos para tentar salvatar algo da
catástrofe em que se transformou a saúde pública brasileira - por pressão dos
médicos. Ao mesmo tempo a popularidade da presidente despenca vertiginosamente,
deixando entrever a possibilidade de a concertação vetero-conservadora que a
mantém no poder se reagrupar em torno de uma alternativa neo-conservadora
capitaneada por Marina Silva e seu novo partido, que se coloca como o novo
campeão do capitalismo verde.
Sentindo a
mudança dos ventos, Marina corteja o setor mais reacionário da atual clique governamental
do establishment, a bancada de representantes evangélicos - o que,
curiosamente, é 'denunciado' por petistas que, em um delírio esquizofrênico,
parecem ignorar que os mesmos fazem parte de sua própria clique governista. Caso
seja bem-sucedida, sua concertação reunirá sob a mesma clique grupos de
empresários religiosos, industriais e
agro-empresários, junto com setores expressivos das elites profissionais,
políticas, jurídicas e do serviço público, acobertados por uma nova versão do
discurso da indiferenciação e da mélange que - eles esperam - seja capaz de
novamente cativar o povo a participar dos rituais de legitimação institucional
do establishment.
Por sua vez,
Dilma Rousseff tenta desesperadamente recuperar a capacidade de seduzir a
multidão a acreditar na mágica das instituições. Não acredito que aconteça. Ao
cobrar do movimento uma coerência que ela própria não tinha, esta configuração
específica do establishment parece fadada ao ocaso e ao esquecimento. Justamente
- aqui volto à análise feita pelos grupos que se reúnem sob a identidade de
'Anonymous', algumas semanas atrás - porque a crítica do movimento (que se
tornou a crítica da consciência nacional nas últimas semanas) ao establishment
é moral. E uma coisa é regra em abordagens morais: o valor de um enunciado
qualquer é diretamente proporcional ao caráter moral daquele que o enuncia. Em
bom português: para se cobrar algo, é preciso ter moral para tanto. E neste
pormenor a clique que opera presentemente o establishment está em falta.
Presidente, governadores, prefeitos, parlamentares, etc, etc - nada disso
convence mais, justamente porque a estratégia escolhida para esvaziar o
movimento expôs, em toda sua nudez, a amoralidade de sua concertação. E isso é
algo que 'democracias representativas' necessitam esconder a todo custo.
Claro, a
amoralidade é uma característica da vida política - Maquiavel já deixou isso
claro centenas de anos atrás. Mas a mágica do discurso da nação/país/povo
consiste justamente em - entre outras coisas - esconder esse aspecto
absolutamente essencial da vida política. E certamente ela se estende a toda a
face política do establishment - o PTMSDEMB & apêndices. Mas a presidência
da república tem um caráter especial nesse processo. Pontifex Maximus da
concertação política do establishment (que inclui também a oposição, claro), a
presidência brasileira é algo similar ao Rei da Floresta da mitologia antiga:
sua conexão telúrica de certa forma garante que tudo vá bem na sociedade
política institucional. Quando esta conexão (que é com o povo/país/nação
encarnados, e é vista como uma conexão visceral com a brasilidade - Lula foi o
exemplo vivo disso) é rompida, a ameaça paira sobre todo o establishment. E é
necessário um novo soberano que garanta essa conexão com a Terra Brasilis
mesma.
Se será ou não
Marina Silva a desafiar Dilma e derrotá-la, se tornando a nova soberana - essa
é uma questão menor, me parece.Aparentemente o establishment já se acalmou e
voltou à sua 'normalidade'. Demandas foram canalizadas para canais
institucionais que - como sói acontecer com eles - não funcionam, nunca
funcionaram e não tem perspectiva de funcionar algum dia. Ninguém espera, por
exemplo, que o congresso nacional, uma espécie de autarquia formada por
diferentes grupos - boa parte deles criminosos, de uma ou de outra forma - que apenas
defendem seus próprios interesses, vá reformar a si mesmo. Alheios a esta
percepção por parte da consciência nacional, políticos parecem ter-se
convencido que tudo está como dantes no quartel de Abrantes.
Nada mais enganoso,
na minha opinião. Creio que para tornar clara de onde vem esta opinião seria
necessário explicar como juntar coisas absolutamente díspares e tirar delas
algum significado. Mas não sei fazer isso; isso pode ser mostrado, mas
explicações serão sempre, desconfio, ex post facto: feitas sob encomenda para
justificar algo que já passou e portanto suspeitas como explicação (embora
produza-se boas interpretações assim, concedo). Seria como explicar os sabores
do vento ou a sinfonia das cores, coisas que quem experimentou sabe como é mas
dificilmente tem palavras para falar sobre. Afinal, o que parece haver de comum
entre torcedores estraçalhando um juiz de futebol em campo, no Nordeste;
trabalhadores bloqueando a via de acesso ao sítio de obras de Belo Monte para
cobrar indenização de impacto ambiental/social não paga; manifestantes ocupando
câmaras de vereadores por todo o país; a opinião pública que não abre mão de
saber que político ou juiz viajou em que avião da FAB para onde, fazendo o que
e gastando quanto de nosso dinheiro público. Como explicar o esvaziamento tanto
das manifestações dos sindicatos pelegos quanto a 'marcha pela família' de alguns dias atrás, ambos caricaturas grotescas
de seus ancestrais na história do país, simulacros que simplesmente deram
errado, incapazes de copiar eficazmente o modelo?
Na minha
opinião, isso que está obviamente sendo encarado pelo establishment como a
derrocada do movimento não é mais que um movimento esperado, uma certa
alternância entre sístole e diástole, dois momentos e um mesmo processo. Que no
contexto atual se afigura cada vez mais como a calmaria que antecede a
tempestade, dado o evidente esquecimento por parte dos políticos (e outros
agentes do establishment) de que há poucos, pouquíssimos dias atrás estavam
todos com a faca no pescoço. E isso é uma coisa ruim de se esquecer, especialmente
quando a faca, mesmo não sendo mais íntima de sua jugular, ainda está
desembainhada.