terça-feira, 22 de maio de 2012

As Lágrimas na Morte de Kim Jong Il e o Delírio Mesmérico da Gloriosa Mídia Livre


Algum tempo atrás, ali pela época da morte de Kim Jong Il, líder da Coréia do Norte, conheci um sítio curioso na internet. Ele se chama 'Kim Jong Il Looking at Things' (aqui): Kim Jong Il olhando coisas. É composto apenas de fotos, com algumas linhas de texto que dizem "o querido líder gostava de olhar coisas. Atualizado dia sim, dia não, algumas vezes durante os fins de semana." Uma mensagem singela, seguida de várias fotos que mostram o líder olhando coisas as mais diversas: gansos, plantas, um canal, uma rede de pesca de nylon, crianças, capacetes de soldados, ilustrações, pedras, livros, uma impressora, operários industriais, lulas (os animais marinhos, quero dizer), um console de instrumentos, um templo, potes de cerâmica, espigas de milho, uma guia turística e até mesmo para o teto...

As imagens não mostram nada além disso: Kim Jong Il olhando. Olhando as coisas mais comuns, inocentes. Alguns recorrerão a um meme conhecido e decretarão: é culto à personalidade. No entanto, apesar de o sítio como um todo ser obviamente propagandístico da figura do líder, esta parece carecer daquela aura de poder, de autoridade, que se espera de algo como um culto à personalidade. Não se mostra mais que um senhor de idade, traje informal (nunca aparece de terno), tratado aparentemente com deferência (mas não com adoração, ou reverência) pelos que o cercam. Nenhuma cena explícita de poder ou de autoridade: simplesmente um homem olhando, sempre olhando.

Fica claro, pela diversidade e mesmo pela banalidade das fotos, que o objeto do olhar do líder não é de maior significação. Significativo é, isso sim, o fato de que todas mostram Kim Jong Il olhando. É o olhar dele, não o objeto deste olhar, que está sendo mostrado nas fotos. Na grande maioria das fotos ele não faz nada alem de olhar; algumas vezes parece ouvir o que lhe falam. Rosto impassível, sempre de óculos (escuros em ambiente aberto, de grau em ambientes fechados). Quase nunca sorri, a exceção sendo quando aparece em fotos com crianças, com as quais às vezes parece estar conversando.

A mirada de Kim Jong Il não se mostra ameaçadora, autoritária ou invasiva: ela não é o equivalente da teletela de 1984de Orwell, nem dos edifícios de paredes de vidro de Nós, de Zamiatyn. O Glorioso Líder dos Povos apenas olha. Se algum significado pode ser atribuído ao seu olhar, creio que é o do testemunho. Ele presencia a vida cotidiana de seu povo em todos os seus aspectos públicos e assim sua presença se torna um testemunho daquela. Simples assim.

Um corte rápido aqui e vejo agora em minha memória o lamento popular no funeral do Glorioso Líder dos Povos. A multidão chocada, a dor profunda visível nos rostos das pessoas presentes na praça central de Pyongyang. Milhares se debulhando em lágrimas obviamente sinceras. E, principalmente, o espanto, a incredulidade com que nós, estrangeiros 'ocidentais', recebemos este lamento. Aqui, novamente, o meme fácil salta à língua: são um povo enganado, controlado, adestrado no culto ao ditador defunto desde crianças.

Felizmente não temos isso.

Memes, esses pequenos fragmentos de ideias, tem mesmo essa característica. Infinitamente repetidos pela mídia, eles parecem - involuntária e às vezes inconscientemente - saltar diretamente da memória para a língua sem a intermediação do pensamento crítico. Seu uso contínuo e acumulado, articulado, cria uma imagem mental do mundo sobre a qual não pensamos - sobre a qual, na verdade, nos recusamos a pensar. Uma imagem mental é, é claro, da mesma natureza que um delírio, uma alucinação. Memes e suas articulações são mais ou menos como uma viagem de ácido, mas sem o benefício da privacidade. Pois essa imagem mental é compartilhada por muitos, pela maioria mesma da sociedade em cuja mídia aqueles circulam. São na maioria das vezes sutis demais para que a maioria perceba sua presença: os ditadores da Líbia e da Síria, versus o presidente do Iêmen, o rei da Arábia Saudita; a censura da internet na China versus o monitoramento da internet pela CIA americana; a primavera da democracia dos protestos árabes versus os baderneiros dos protestos anti-G8 e OTAN; os dissidentes políticos em prisões cubanas versus os terroristaspresos pelos americanos em Guantánamo; o terrorismo da Al Qaeda versus os ataques preventivos dos americanos.

Todos estes são memes que fazem parte de nosso cotidiano neste começo de século. Eles formam como que a base de uma comunicação consensual nas pessoas submetidas a eles, de forma que quando contestados chegam mesmo a despertar a ira mal disfarçada destas. Como se aquele que não os reproduz - viralmente, como em computadores - fosse excluído do mundo compartilhado pelos indivíduos da sociedade. Um pária, um estranho que - como todo estranho - é inconfiável. Este mundo delirante se assemelha assustadoramente ao mundo drogado compulsoriamente descrito por Stanislaw Lem em O Congresso de Futurologia ou, para usar uma imagem mais popular, à Matrix todo-poderosa do filme dos irmãos Wachowski.

Esta imagem mental tem um sentido claro: ela cria um 'nós' que é essencialmente diferente dos 'outros' que não compartilham dela: os terroristas árabes, os ditadores asiáticos e cubanos, os desordeiros dos protestos anti-globalização são os 'outros.' A articulação destes poderosos memes cria uma ideia recorrente:

Felizmente não temos isso.

Não temos? Isso é algo para se pensar. E pensando saímos da área de segurança criada pelos memes, no aventuramos no terreno desconhecido de uma realidade imperfeitamente cartografada, cheia de zonas de penumbra e imprecisões. E, acima de tudo, caímos em uma zona onde os limites entre 'nos' e os 'outros' não são claramente definidos. Começamos assim a perceber - incomodamente, para a maioria - que temos todos, 'nós' e 'eles', muito em comum.

Certamente não temos líderes estranhos que olham as coisas e gente que publica fotos dele fazendo isso, dirão vocês. Não temos necessidade de alguém que testemunhe nossa vida. Mas será? Creio que temos sim. Claro, não temos uma pessoa que o faça, mas temos uma entidade cujo papel é fazer exatamente isso: testemunhar e tornar este testemunho visível a todos. Esta entidade não é única: temos nossos Kim Jong Marinho, nossos Kim Jong Macedo, nossos Kim Jong Civita e mais aí uma meia dúzia de três ou quatro, talvez.
Oh, claro, eles não aparecem em pessoa, como Kim Jong Il. Há uma entidade invisível que cumpre esse papel, e temos que admitir aqui o grande poder dos memes sobre nossas percepções. Porque nossa crença nessa entidade invisível é tão forte que nossa indignação quando se a desacreditam é tão grande, ou mesmo maior, que o pesar dos coreanos pela morte do Glorioso Líder dos Povos.

Nós temos a Gloriosa Mídia Livre.

Convenhamos: acreditar na existência desta entidade invisível e benéfica, que tudo presencia na esfera pública e a todos traz seu testemunho fiel e verdadeiro sem invadir a privacidade daquilo (daqueles, melhor dizendo) que presenciou exige um esforço-um esforço delirante, digamos - muito maior que acreditar na existência de Kim Jong Il como executor da mesma tarefa. Este último ao menos tinha uma existência de carne e osso. Um a zero para os 'nossos' memes.

Mas, dirá você, certamente não se pode comparar uma mídia plural livre com um monopólio da informação de um país totalitário (sendo estes outros memes muito difundidos). Na verdade, talvez esteja aí a primazia dos 'nossos' memes sobre os 'deles': aqui temos vários para fazer o trabalho que lá é feito por um só... Claro que a eficiência aumenta nestas condições.

Mas ainda, dirá você novamente - e realmente dirá ou ao menos pensará, sei disso justamente porque os memes que informam sua percepção não são parte do repertório privado da sua memória mas são públicos, compartilhados por muitos -no caso de Kim Jong Il trata-se de uma ditadura que controla a informação, que manipula, que mente. Que submete a disseminação da informação aos ditames do poder do Estado.

Neste ponto, talvez você tenha dificuldade em terminar a sentença, logo termino para você: ela termina coma inevitável comparação, hoje complicada de ser afirmada em voz alta, de que 'aqui, nossa mídia livre não tem dessas coisas'. Difícil porque depois dos últimos escândalos envolvendo a Gloriosa Mídia Livre com o crime, a contravenção; da criação de mentiras midiáticas para manipular instituições, destruir credibilidades, criar credibilidades artificiais; atacar governos e oposições, etc, etc; fica realmente difícil terminar a sentença. A manipulação dos memes pela mídia tem sido falha atualmente; erros na Matrix deixaram à mostra mais do que deveria estar exposto; pequenos fragmentos de realidade se intrometeram em nosso delírio mesmérico. Temos hoje a oportunidade de ver, ainda que de relance, um mundo real ao qual não tínhamos acesso até então.

Resta saber o que faremos com ele.

sábado, 19 de maio de 2012

Ye Olde Man




The old man goes down the street.
His memories go with him, faithful companions
down the street.
His gray hair shines in the summer sun.
How many summers behind? 
How many summers ahead?
He does not know
he does not count.
His memories make him forget.
Time and again in his stroll he goes down the streets of his youth.
They are always with him, the streets of his youth
in every street he walks down.
He knows the streets are but one, 
have been one throughout his life
throughout his walk
and they all lead to the same end.

(Inspirado em um poema de Konstantinos Kaváfis)