segunda-feira, 29 de julho de 2013

'Porque Mérito, Nós Temos!' Sobre Mérito, Antropologia, Concursos e o Século XIX Dentro de Nós

     Nota recente da ABA - Associação Brasileira de Antropologia, aconselhando departamentos de universidades ofertando vagas para antropólogos que não restrinjam a inscrição a portadores de diploma de graduação em ciências sociais (veja aqui a nota), despertou pela primeira vez - talvez devido ao clima político recente, quem sabe - manifestações corporativistas da parte de antropólogos e supostos antropólogos, em uma paródia do movimento dos médicos coxinhas da avenida Paulista, que reivindicam a exclusão de pós-graduados em antropologia vindos de outras áreas. Um abaixo-assinado no site avaaz.org (aqui, ó) circula para este fim, com caloroso apoio de concurseiros aparentemente temerosos da concorrência.

     Na refrega corporativista, até eu fui atingido. Ao tentar argumentar em um grupo de discussão do Facebook voltado para a comunicação de antropólogos e afins, tive meus posts recortados, deturpados e reaproveitados em um trabalho de bricolagem marqueteira (aqui) - numa espécie de atualização virtual de atuações cômico-folclóricas de novelas kitsch de Dias Gomes -  em um 'Blog do Máík (sic) Oliveira', de um ex-aluno do curso de graduação (licenciatura) em ciências sociais da UESC - Universidade Estadual de Santa Cruz (Ilhéus-BA) - no qual seu administrador, após paradear toda sua erudição antropológica em exatas 26 linhas, termina com a manifestação prototípica dos corporativistas: 'Porque, mérito nós temos!'.

     Creio que o evento é revelador e gostaria de pautar por ele minha argumentação. O referido curso - do qual sou professor, aliás - é um curso de licenciatura, voltado para a formação de professores de sociologia do segundo grau. Tem em sua grade curricular quatro matérias de antropologia. Isso não é de forma alguma incomum, ou mesmo indesejável. A formação de professores de sociologia para o segundo grau é uma necessidade real e não há nenhum demérito em criar um curso para atender à mesma. Aliás, esse é um dos objetivos centrais dos atuais cursos de ciências socais que não possuem diferenciação interna em áreas de formação. Como é o caso do curso da UESC. 

     Isso acontece porque 'ciências sociais' não existe como área de formação. Existem sociologia - área de concentração da esmagadora maioria dos cursos de ciências sociais pelo país -  ciência política e antropologia, estas sim áreas de conhecimento definidas ao longo do século XX e reunidas, no caso do Brasil (e apenas deste país, aliás) em um único curso de graduação, que se complementa com a formação pós-graduada nas respectivas áreas temáticas. Cursos de graduação em ciências sociais jamais foram pensados e criados para formar antropólogos; quando muito, o foram para formar sociólogos, que tiveram grande penetração no serviço público nos anos setenta no brasil, devido à própria conjuntura política de então, marcada no serviço público por um tecnocratismo autoritário que buscava 'soluções técnicas' para as questões sociais e políticas brasileiras. Quando muito, o curso de graduação em ciências sociais serviria para fornecer noções básicas das outras áreas, vistas então como 'inaplicáveis', como desprovidas de utilidade prática. serviriam então para formar massa crítica para as nascentes pós-graduações que seriam formadoras de acadêmicos apenas. Cursos de outras áreas das ciências sociais, como administração, economia e direito, foram classificados como 'ciências sociais aplicadas', para diferenciá-los dos primeiros.

     Os tempos no entanto mudaram. Com o fim da ditadura e a redemocratização do país, a antropologia passou a ser requisitada como atividade aplicada. A afirmação dos direitos diferenciados (Indígenas, negros, de minorias, de mulheres, etc); o reconhecimento da importância da cultura no contexto dos direitos (patrimônio imaterial, cultura dos grupos formadores da nacionalidade brasileira, etc), praticamente impõe a necessidade de antropólogos para a realização dos estudos necessários ao cumprimento destes direitos. 

     Esta valorização da atividade profissional do antropólogo - que acontece desde o começo dos anos 90, com as primeiras tentativas de colocar em prática a letra da Constituição Federal aprovada em 1988 - finalmente parece ter sido percebida pelos antropólogos em universidades, com os vinte anos de atraso que parecem ser a regra no meio acadêmico brasileiro. Começa, finalmente, a surgir cursos de graduação em antropologia, essenciais para atender à demanda constitucional de defesa de direitos diferenciados e de direitos culturais da sociedade brasileira. 

     No meio do caminho, ficou a pedra dos cursos de ciências sociais. Desde a sua criação, estes foram construtos artificiais do ponto de vista do conhecimento: 'ciência social' simplesmente não existe enquanto tal, não correspondendo a nenhuma forma de conhecimento concreta da realidade. Cada uma das 'ciências' (coloco entre aspas porque a antropologia mesma rejeita, em sua grande maioria, o rótulo de 'ciência'), ao longo do século XX, constituiu-se em uma forma diferenciada de investigar a realidade social/cultural humana, com temáticas, objetivos e formas de fazer distintas. Com a redemocratização do país, a constituição dos cursos de ciências socais também passou a revelar a artificialidade que preside sua definição enquanto não-área. 

     Tomemos como segundo exemplo, para aclarar este ponto, um curso de ciências sociais como o da UnB, que já a partir do segundo ano diferencia entre as áreas de concentração, o que faz com que seus estudantes tenham em seu currículo a maioria das matérias feitas na área de escolha, qualquer que seja ela. Este curso, no qual um estudante fará, digamos, dois terços das matérias (pelo menos) na área de concentração 'antropologia', dará direito ao mesmo a um diploma de 'ciências sociais' (a 'área de habilitação' sendo atestada por um carimbo no verso do mesmo). Diploma idêntico ao do estudante da UESC, que cursou ... quatro matérias de antropologia em sua vida acadêmica. A artificialidade do rótulo 'ciências sociais' se torna aqui não apenas evidente, mas gritante. Assim como o ridículo daqueles que afirmam, de peito cheio, 'mérito, nós temos!'. Vê-se claramente aqui que mérito real, no que tange à formação em antropologia, existe apenas naqueles cursos que, criando desde o início a diferenciação na formação de estudantes de sociologia, antropologia e ciência política, buscam eliminar a artificialidade do curso de 'ciências sociais', tornando este um rótulo que mais atrapalha do que ajuda a formação acadêmica de seus estudantes.

     Gostaria aqui de fazer uma reflexão sobre esse 'mérito'. Uma reflexão antropológica, que procure compreender os sentidos atribuídos a este 'mérito' que à primeira vista parece completamente deslocado no contexto da afirmação: afinal, que mérito é esse que permite a alguém que cursou quatro disciplinas em uma determinada área - menos que o número de disciplinas optativas feitas por quaisquer estudantes de outros cursos, que poderiam ser todas na área de antropologia, por exemplo, perfazendo um total maior que as do blogueiro da UESC - se arrogar um mérito profissional que estudantes de outros cursos só se arrogam após vinte, trinta disciplinas cursadas? Seria algum tipo de condição intelectual ou cognitiva adversa que leva um comentador deste mesmo blog a afirmar, 'então também posso medicar', se comparando a médicos que passam seis anos de suas vidas estudando matérias de sua área?

     Não creio que a questão seja esta. Na verdade, desconfio que o sentido atribuído aqui ao termo 'mérito' é inteiramente outro. Trata-se daquele sentido utilizado no Brasil patrimonialista do século XIX, onde o 'deproma' era pouco mais que a condição formal para se ascender a determinado cargo público, entendido como uma sinecura: uma posição na qual o indivíduo recebia benesses estatais sem a contrapartida de qualquer exercício profissional.relevante.

     Me parece portanto que tratamos aqui, não de uma questão intelectual ou cognitiva, mas de uma questão moral. Trata-se, creio, do exercício de uma moralidade oitocentista que busca no Estado um fonte de espaços apropriáveis individualmente, do monopólio de privilégios negados a outros independente da capacidade concreta - do mérito, entendido em seu sentido literal. 'Mérito', assim, adquire um sentido antitético ao sentido usual do termo, tornando-se uma senha para que grupos de pretendentes a novos 'bacharéis da república' se apropriem privadamente do bem público. 

     Cabe-nos aqui perguntar: como é possível que em um país que finalmente parece ter-se conscientizado de que está no século XXI - com mais de uma década de atraso - como nos mostra o recente movimento popular que tomou as ruas e a consciência nacional, ainda há espaço para tais arroubos oitocentistas? Sim, porque como demonstram as recentes manifestações de médicos coxinhas e de lideranças evangélico-fascistas pelo país afora, isto não é uma idiossincrasia de indivíduos de rincões impermeáveis ao século XXI (e ao século XX), mas um fenômeno bem mais geral. Essa sim, é uma questão séria para se pensar e este exemplo anedótico pode servir talvez para lançar alguma luz sobre os dilemas da atual sociedade brasileira.

     Como espero ter mostrado aqui, 'ciências sociais' simplesmente não existe, nem como área de conhecimento, nem em termos concretos como curso específico. Afinal, para ser algo é necessário, aristotelicamente, ser igual a si mesmo e isso 'ciências sociais' não é: o estudante da UESC, com suas quatro matérias de antropologia no currículo, não pode se comparar em termos de formação em antropologia, ao estudante da UnB que faz quase todo seu curso na área específica de antropologia. Tudo que estes tem em comum é um nome escrito em um pedaço de papel colorido. Afirmar que a existência deste pedaço de papel os torna idênticos é um arroubo de mentalidade oitocentista verdadeiramente deplorável em um país que se pretende parte de seu tempo. 

     Gostaria de deixar claro, quanto ao tema inicial deste comentário, que mesmo que tivéssemos hoje no Brasil cursos de graduação em antropologia estabelecidos e em número suficiente para a formação de massa crítica, ainda assim eu seria contra restringir a inscrição em concursos para professor universitário a graduados em antropologia. Diferente do uso do termo empregado pelo estudante da UESC, defendo que concursos acadêmicos devem se pautar por mérito real, não formal. Isso em si mesmo reflete uma visão - espero - mais contemporânea do país e do mundo, cada vez mais necessitado de exercício acadêmico competente capaz de alavancar a inclusão social e de direitos de largas parcelas da sociedade brasileira. E é esta competência - este mérito, no sentido literal da palavra - que creio dever ser buscado em concursos acadêmicos. 

     Ao longo da história mundial e local da disciplina, pesquisadores e professores de antropologia foram provenientes das mais diferentes áreas de formação profissional e acadêmica: filosofia, literatura, biologia, matemática, física, engenharia, medicina, história, geografia, artes, música e por aí vai: a lista é grande. Departamentos de antropologia - bons departamentos de antropologia, quero dizer - no Brasil assim como pelo mundo afora jamais criaram tais restrições artificiais e sempre tiveram - e têm atualmente - em seus quadros pesquisadores e professores com as mais variadas origens acadêmicas. O que apenas enriquece a disciplina, diga-se de passagem.

     Acho compreensível que potenciais concursandos temam a concorrência de colegas vindos de outras áreas de formação. Estivesse no lugar deles eu também temeria. Afinal, gente que saiu de sua área, muitas vezes sem sequer uma disciplina na área de antropologia, concorreu com gente com diploma em ciências sociais em seleções de pós-graduação, onde via de regra se cobra uma carga de leituras extremamente pesada - e ainda assim passou, cursou e concluiu sua pós-graduação, bom, o mínimo que podemos dizer é que eles são BONS, muito bons. Provavelmente acima da média. Por isso mesmo acho que concursos acadêmicos não apenas devem, mas precisam incluir tais candidatos. A menos, é claro, que a instituição acadêmica em pauta não tenha interesse em bons profissionais. Algo que acho inadmissível nos dias de hoje.

     (Apenas para constar: não estou argumentando em causa própria. Minha graduação foi em ciências sociais. Por isso mesmo sei do que falo. Fiz o equivalente a sete disciplinas de antropologia em minha graduação, o que me deixou apenas a certeza de não saber virtualmente nada de antropologia, além do desejo de conhecer mais. Atitude, pelo visto, um pouco menos popular hoje em dia.)