quarta-feira, 31 de julho de 2013

Uma noite qualquer, na aldeia

     Olhava o céu cheio de estrelas e pensava, elas todas existem também na minha cidade, claro, mas a gente não vê. Claro né, que coisa idiota pra se pensar, mas em que mais a gente vai pensar depois de seis meses ininterruptos morando em uma aldeia Indígena? Estou acostumado com um pouco mais de movimento, sei lá, mais o que fazer. Tirando a caçada da semana passada, onde quase levei um tiro por acidente, nada muito emocionante pra se fazer por aqui ultimamente. Tem horas que esse papo de trabalho de campo é um pé no saco, principalmente depois de tanto tempo, pensou, aborrecido. 

Para dissipar os pensamentos negativos, concentrou no guerreiro do seu lado, pernas abertas e braços cruzados, olhando para o céu. Pensativo, aparentemente, ou apenas entediado como eu? Sei lá, fala pouco, o cara. Melhor nem perguntar. Caladão, por isso mesmo bom caçador, pensou, mesmo que quase tenha me matado ao atirar naquele mutum bem na minha frente. Bom, o cara era gente boa, não é? Não só não me matou como ainda dividiu o mutum contigo. I-pôk, pelo meio, coisa que tem seu peso simbólico aqui. Simbólico e prático, já que mutum não tem tanto assim o que comer, ave pequenininha, menor que uma galinha d'angola. Que você, claro, dividiu com os amigos como um bom antropólogo, pensou - ou como um bom amigo, sei lá. Quatro comendo meio mutum. Vida de antropologo tem dessas coisas, pensa. Com um suspiro. 

Mas deixa esse papo pra lá, melhor se concentrar no céu. Aliás, no céu não, no Bep-Týk olhando o céu. A volta do parafuso antropológico. Ele parece estar mesmo olhando o céu, pensa. Quer dizer, olhando de verdade e não simplesmente usando aquela visão - ele não deixava de achá-la maravilhosa, por mais banal e frequente que fosse - como desculpa para olhar pra dentro de si mesmo, pensar um pouco na vida, no universo e em tudo o mais. Como ele mesmo estava fazendo, percebeu. Ou será que? Com um certo choque, percebeu que estivera fazendo ambas coisas havia algum tempo. Indistintamente. Há algo a se aprender aqui, decidiu. Ou não. Sei lá, penso nisso outra hora. Agora, melhor concentrar no cara e no céu.

     Notou que a atenção dele estava mesmo no céu, que ele prescrutava com olhar atento de caçador. A mesma atenção que havia visto em seus olhos atrás do buraco do cano da espingarda doze, quando se abaixou instintivamente e que continuava lá, mirando um pouco à sua frente, logo após o disparo. Olhando para o mutum como agora olhava para o céu. Na falta do que fazer, e do que falar, resolveu apelar para a boa e velha mimese. Postou-se ao lado dele, pernas entreabertas, olhar atento perscrutando não sabia o que no céu estrelado, braços cruzados sobre o peito. Melhor que isso só em desenho animado, pensou. Afinal de contas, o que seria da atnologia Indígena sem uma forte dose de bom humor? Essencial para o trabalho de campo, principalmente depois de seis meses de aldeia. 

     Parece ter dado certo: Bep-Týk lentamente separa os lábios e pronuncia duas palavras: kuben koikwa. Nem por um momento desvia sua atenção do céu estrelado, seus olhos de caçador espreitando as estrelas como se mutuns estivessem escondidos ali, ao alcance de seu tiro. À sua volta uma brisa fresca começa a agitar as folhas na cabeceira da pista de pouso deserta, o pio lúgubre de uma coruja acrescentando um toque fantasmagórico à cena.

      Duas palavrinhas curtas. Seu significado era claro: 'kuben' era 'estranho', 'branco'. 'Koikwa', 'céu'. Céu de branco, de não-Índio. Significado claro, sentido obscuro. Lembrou de Gadamer. Com raiva. Quero mais que a hermenêutica vá pro inferno, pensou. Coisa mais idiota pra se lembrar numa hora dessas. Ou em qualquer hora. Enfim. Voltemos ao guerreiro. Aqui, parado ao lado dele, mesma pose, mesma atitude, mas quanta diferença. Duas palavras erguem uma muralha entre nós. Talvez para minha vantagem, afinal. Porque parece haver algo importante nisso aí. 

     Sua mente voa para longe. Para seu orientador, sua deadline para submissão da tese (aproximando perigosamente) e seu projeto de pesquisa. Afasta com um pestanejar a imagem da colega sueca que pegava três vezes por semana, quando o noivo missionário e babaca estava fora encontrando deus em algum canto úmido daquele país chuvoso no qual fazia os créditos do doutorado - meus orixás, mais de seis meses sem mulher, nessa aldeia... ê vida difícil essa de antropólogo, meu - e concentra a atenção na teoria. Isso é papo cosmológico, pelo jeito. Assunto meio batido mas vá lá, de repente rende alguma coisa interessante. Melhor prestar atenção.

     Parado ali, do lado de Bep-Týk, não pode deixar de notar que a noite parecia mais escura de repente, como se a sombra de Àk Kumrentx, o urubu-rei, houvesse se abatido sobre a terra. The world has come to a standstill, pensou em inglês, quase praguejando em voz alta - em português - contra o tempo passado no Reino Unido estudando antropologia. Ao mesmo tempo, maravilhando-se com a capacidade da mente em se ajustar às condições do pensamento: pensava em inglês ao pensar em antropologia, muito evidentemente porque escrevia suas notas de campo em inglês.  Pra não esquecer a língua. Porque tinha que escrever uma tese em inglês, cujo deadline se aproximava cada vez mais. Como um assassino se aproximando lentamente em um plano de profundidade de um filme de Tsukamoto. Melhor pensar em outra coisa.

     A pista de pouso lhe parecia mais deserta que nunca; até o vento havia parado. Reparou pela primeira vez que os morros gêmeos à esquerda da pista tinham a forma exata dos peitos de Ulla, quando a favor da gravidade. Twin peaks, mellon-shaped. De novo a sueca baixinha e faladora tomou sua mente. Engraçado: sempre pensara em suecas como mulheres grandes e experts em sexo, coisa dos filmes e revistas pornô de sua adolescência. Ulla, a primeira sueca que conhecera (no sentido bíblico, claro - sempre achara essa expressão meio cômica), tinha pouco mais de um metro e sessenta e não era exatamente boa de cama; salvava o interesse sempre presente por sexo - coisa rara entre as mulheres naquela cidade do interior da Escócia onde estudava. 

     Lembrou do amigo espanhol que tinha convencido uma inglesa a visitar sua cama, depois de quase um mês de seca ao chegar lá. Dez minutos pra levar pra cama, menos que isso pra sair dela. Quando perguntou como havia sido a coisa, Juan havia respondido filosoficamente: compañero, mejor que hacerse la paja - creo. Com Ulla pelo menos não tinha disso. Da pista de pouso podia ouvir o barulho da aldeia a menos de quinhentos metros dali. Era noite de festa e os homens mais velhos estavam ensaiando com os mais jovens a musica que iam cantar no aminh aprã, o ponto culminante da festa que aconteceria após a caçada coletiva em alguns dias. Deixou que o som da música, forte e rítmica, expulsasse os peitos de Ulla da sua mente. 

     Vontade de mijar. O barulho de um bicho qualquer no canto da pista, perto mas não o suficiente para que precisasse se preocupar. Um barulho voador, bem distante. Lembrava um carro. Claro que não era. Avião, a essa hora? Traficante, com certeza. O sul do Pará era cheio de fazendas de boi branco, imensos latifúndios cuja única renda vinha das pistas de pouso clandestinas. O barulho lhe lembrou por vias tortas o amigo Dan, colega canadense de doutorado cujo hobby era mijar nas maçanetas dos carros de luxo estacionados na frente das residências estudantis posh daquela universidade para ricos no interior da Escócia. Juntos haviam mijado em porsches, mercedes, rolls-royces, ferraris, lamborghinis dos estudantes riquinhos. Dan se gabava de ter mijado no carro do príncipe de Gales, que estudava em nosso departamento. Mas não achava que fosse verdade: tinha sempre guarda-costas em volta do carro. 

     Varreu mais esses pensamentos da cabeça e olhou para Bep-Týk do seu lado. Melhor levar isso aqui a sério. Uma tese pode render, talvez? Um artigo certamente. Mil elocubrações teóricas passaram em um flash pela sua cabeça, afastando definitivamente a sombra dos peitos de Ulla que insistiam em se fundir aos morros gêmeos ao lado da pista de pouso. Cosmologias de contato interétnico. Mitologia sobre o Homem Branco, esse ser onipresente - infelizmente. Idéias e autores e teorias pipocavam em sua cabeça, céleres. E artigos, bolsas, congressos. 

     Okapa, vamos dar então à coisa a seriedade que ela merece. Ali, ao lado do guerreiro silencioso, braços cruzados, face inescrutável mirando o infinito, inabalável como o monolito de 2001 de Kubrik, traçou mentalmente o plano de trabalho. Lentamente, pronunciou as palavras ditas por Bep-Týk. Kuben koikwa... Sem deixar de mirar o céu, dando à voz apenas uma leve entonção de curiosidade, como aprendera com os mais velhos ali na aldeia.

     Aj, assentiu o guerreiro, também sem desviar seu olhar da imensidão celeste. Coração batendo um pouco mais rápido, fez a pergunta importante: myj-na kuben koikwa? 

     Julgou ter detectado na face de pedra de Bep-Týk, apenas julgou, não tinha certeza, um pequeno movimento no canto esquerdo da boca, um leve esgar de um sorriso suprimido, quando ele respondeu: é satélite, kuben, nunca viu não, é?