sábado, 28 de abril de 2012

O Índio, O Apito, a Mídia - e Nós


No julgamento do STF sobre as cotas 'raciais' nas universidades públicas, um episódio chamou a atenção da mídia mais que o julgamento em si mesmo: um Índio Guarani - aparentemente chamado Araju Sepeti, que é obviamente um anagrama de Sepé Tiaraju e, segundo matéria do Estadão é representante de uma ONG sul-matogrossense chamada Central da União de Índios e Aldeias - interrompeu o voto de um dos ministros, Luis Fux, quando este mencionava a ausência de representantes afrodescendentes na magistratura, com gritos de 'tem que falar dos Índios também!'. A repetição das interrupções por mais duas vezes fez com que o ministro interrompesse o voto e solicitasse sua retirada do plenário. Um espectador, negro, tentou acalmá-lo e foi insultado por ele com vituperações sobre 'voltar para seu quilombo'. O Índio foi retirado á força do plenário, carregado por cinco seguranças até o lado de fora, onde se transformou em objeto do desejo dos fotógrafos presentes.
Mais interessante, no entanto, tem sido a circulação dessas fotos pela internet e os comentários que elas tem gerado. Um comentou: "aonde está a tão propalada inclusão social?" Como se retirar alguém que interrompe um julgamento do STF - na apresentação dos votos a palavra não é aberta - e insulta os presentes fosse um ato de exclusão SOCIAL. Certamente é um ato de exclusão... do recinto do STF, que se presta pobremente a metonímia da sociedade brasileira, neste caso.  Outro comentário (no artigo do Estadão, aqui) afirmou que 'faltou aos juízes conhecimento antropológico da sociedade Indígena', que seria, segundo o comentarista, 'tem uma cultura geral assembleísta, horizontal, interacionista, participativa' e por isso - chamo a atenção para a conclusão embutida no raciocínio - deveria ter sua 'intervenção' aceita no julgamento.
Não vou comentar aqui a 'antropologia' da carochinha exposta como base do raciocínio. Quero, isso sim, comentar o raciocínio mesmo, o 'deixa rolar porque ele é Índio' que é a base do comentário. Para muitos isso pode parecer uma atitude 'revolucionária': permita-se aos Índios aquilo que a nós, não-Índios, não é permitido! Mas... por que, afinal de contas? Sei que essa pergunta é incômoda (sempre é, aliás). Mas necessita ser feita. Por que permitiríamos aos Índios aquilo que não permitimos - não consideramos válido, nem correto - a nós mesmos, não-Índios? De onde vem esse direito que aparentemente é dado aos Índios e não a nós?
Bom, os Índios tem realmente direitos que lhes são exclusivos e não se estendem aos não-Índios. São os chamados direitos originários, que vêm do fato de que eles, os Índios, estavam originariamente aqui na Terra Brasilis quando estas foram invadidas pelos europeus. Os Índios foram desde sempre considerados súditos do Rei de Portugal e tais direitos originários provêm desta condição. Mas entre eles não está o direito de falar onde quer que queiram, ou insultar negros presentes em um julgamento do STF. Até aí tudo bem; mas o que é realmente interessante, como disse, não é quais direitos eles possuem ou não possuem, mas a percepção de muita gente que parece lhes atribuir tais 'direitos', ou reconhecê-los tacitamente. Pensem bem: se o cara carregado para fora da plenária do STF não usasse cocar, teriam suas imagens - que ninguém me convence que não foram armadas de antemão com algum fotógrafo solícito -  comovido tanta gente? Teriam elas sido veiculadas celeremente por aí pela internet, repositórios de comentários sobre exclusão social? Não creio.
De onde vem essa capacidade de mobilização do imaginário popular - pois imaginados eram todos os comentários que vi a respeito das fotos, nos quais o Índio é tomado como símbolo de algo maior que ele mesmo e seu cocar - que a imagem do Índio circulando na internet parece possuir? Na minha opinião, ela vem da concepção de sociedade brasileira - concepção extremamente arcaica e por isso mesmo conservadora, reacionária - que nós guardamos carinhosamente bem no âmago do nosso ser, naquele espaço instintual que resiste a toda e qualquer racionalização. Ela é uma imagem inconsciente, um animus que nos mostra uma realidade psicológica que resistimos a integrar na nossa apreciação racional do mundo. O Índio da nossa imaginação mais íntima é antes de mais nada uma criança. Uma criança que somos nós mesmos.
Que Índios sejam considerados crianças no pensamento político nacional não é, é claro, nenhuma novidade. Eles o foram durante quase toda a história do país - mais especificamente até a Constituição de 1988 - e continuam a sê-lo por todos aqueles setores da sociedade (em especial os indigenistas mais retrógrados) para os quais a Constituição jamais penetrou na cabeça. Esta é a origem das políticas paternalistas que tratam os Índios como 'incapazes' e portanto desculpáveis quando - por exemplo - interrompem julgamentos do STF. Mas acho que o que está em jogo aqui é mais que isso. Se assim não fosse, como entender que pessoas jovens, progressistas, não vinculadas ao pensamento indigenista tradicional nem ao conservadorismo político, se comovam tanto com as imagens do sujeito de cocar sendo posto pra fora do recinto do STF, a ponto de as replicar sem ao menos verificar o porque da coisa? Gente que em outros instâncias se pauta por comportamentos críticos mas aqui, de repente, abandonam toda a capacidade crítica para usar as imagens do Índios expulso como símbolo de todas as mazelas do país?
Não, acho que há algo mais por detrás disso e creio que o lugar para procurar este algo mais está naquela parte de nossos serem que não atende aos apelos da razão. Que não é crítica simplesmente porque nós a isolamos e protegemos da nossa capacidade de apreciação crítica. Nestes campos inconscientes do nosso ser - de nossos seres - nós somos crianças. Nos relacionamos com o Estado como crianças frente a pais severos e (ocasionalmente) protetores. Creio que vem daí nossa relação 'filial' com o cargo de presidente da república, que vemos (idealmente) como algo paternal, protetor, acima de congressos e juízes, algo que vem para endireitar o torto, consertar o errado, trazer a ordem para o mundo. Nossa 'pátria' - que em português, paradoxalmente é feminina: a mãe-pátria - tem um esposo que é o Grande Provedor, Aquele Que manda na Casa. Nosso Presidente Imperial - a encarnação do Estado na pessoa - é um Pai, um Protetor.
Porém, é complicado assumir isso ao nível da consciência. Aqueles que militamos pela democratização das estruturas do Estado dificilmente nos sentiríamos confortáveis em assumir a posição de filhos reclamões de um Estado-pai. Daí a utilidade da figura do Índio, este sim facilmente assimilável ao papel de criança - uma criança política, que em sua 'inocência' pode se mostrar no papel infantil que nós mesmos autocriticamente recusamos a nós mesmos. O Índio é um Outro - logo, distante de nós - que pode de maneira segura encarnar nossa própria infantilidade frente ao Estado. E podemos nos regozijar de suas atitudes 'inocentes' como se estas fossem nossas próprias: nosso desejo negado, encoberto.
Projetamos no Índio sendo expulso do STF nosso próprio desejo de sermos tutelados - isso é, de sermos tratados como crianças rebeldes, mas amadas - pelo Estado-pai contra o qual nos insurgimos em nossa vida consciente de militantes políticos e cidadãos. Daí, creio, a revolta viva contra as imagens veiculadas na internet, como se elas representassem realmente uma transgressão aos direitos do Índio - e aos nossos.
Muitos Índios - que não são crianças, nem inocentes, mas muitas vezes são agentes políticos refinados - com certeza percebem, ainda que de forma difusa, essa nossa tendência a projetar sobre eles uma parte de nós mesmos que temos dificuldade em assumir racionalmente. E a utilizam em suas manifestações políticas. Algumas vezes de maneira inescrupulosa, como creio que é o caso destas imagens veiculadas na internet do Índio sendo expulso do STF.
Na real, não se trata de nada além de alguém perturbando um julgamento que foi posto pra fora. Se algum dos votos dos ministros fosse contra as cotas 'raciais' - que aliás incluem também Índios - e o cara de cocar tivesse feito sua 'manifestação' durante este voto, teria sido transformado em mártir, em símbolo da luta pelas cotas. Mas isso não aconteceu e ele se deu mal. A permanência dessas imagens na internet e os comentários associados a elas não tem, por isso mesmo, nada a ver com a questão das cotas. Tem a ver conosco. E em algum momento teremos que assumir isso.