No
julgamento do STF sobre as cotas 'raciais' nas universidades públicas, um
episódio chamou a atenção da mídia mais que o julgamento em si mesmo: um Índio
Guarani - aparentemente chamado Araju Sepeti, que é obviamente um anagrama de
Sepé Tiaraju e, segundo matéria do Estadão é representante de uma ONG
sul-matogrossense chamada Central da
União de Índios e Aldeias - interrompeu o voto de um dos
ministros, Luis Fux, quando este mencionava a ausência de representantes
afrodescendentes na magistratura, com gritos de 'tem que falar dos Índios
também!'. A repetição das interrupções por mais duas vezes fez com que o ministro
interrompesse o voto e solicitasse sua retirada do plenário. Um espectador,
negro, tentou acalmá-lo e foi insultado por ele com vituperações sobre 'voltar
para seu quilombo'. O Índio foi retirado á força do plenário, carregado por cinco
seguranças até o lado de fora, onde se transformou em objeto do desejo dos
fotógrafos presentes.
Mais
interessante, no entanto, tem sido a circulação dessas fotos pela internet e os
comentários que elas tem gerado. Um comentou: "aonde está a tão propalada
inclusão social?" Como se retirar alguém que interrompe um julgamento do
STF - na apresentação dos votos a palavra não é aberta - e insulta os presentes
fosse um ato de exclusão SOCIAL. Certamente é um ato de exclusão... do recinto
do STF, que se presta pobremente a metonímia da sociedade brasileira, neste
caso. Outro comentário (no artigo do Estadão,
aqui) afirmou que 'faltou aos juízes conhecimento antropológico da sociedade
Indígena', que seria, segundo o comentarista, 'tem uma cultura geral
assembleísta, horizontal, interacionista, participativa' e por isso - chamo a
atenção para a conclusão embutida no raciocínio - deveria ter sua 'intervenção'
aceita no julgamento.
Não
vou comentar aqui a 'antropologia' da carochinha exposta como base do
raciocínio. Quero, isso sim, comentar o raciocínio mesmo, o 'deixa rolar porque
ele é Índio' que é a base do comentário. Para muitos isso pode parecer uma
atitude 'revolucionária': permita-se aos Índios aquilo que a nós, não-Índios,
não é permitido! Mas... por que, afinal de contas? Sei que essa pergunta é
incômoda (sempre é, aliás). Mas necessita ser feita. Por que permitiríamos aos
Índios aquilo que não permitimos - não consideramos válido, nem correto - a nós
mesmos, não-Índios? De onde vem esse direito que aparentemente é dado aos
Índios e não a nós?
Bom,
os Índios tem realmente direitos que lhes são exclusivos e não se estendem aos
não-Índios. São os chamados direitos originários, que vêm do fato de que eles,
os Índios, estavam originariamente aqui na Terra Brasilis quando estas foram
invadidas pelos europeus. Os Índios foram desde sempre considerados súditos do
Rei de Portugal e tais direitos originários provêm desta condição. Mas entre
eles não está o direito de falar onde quer que queiram, ou insultar negros
presentes em um julgamento do STF. Até aí tudo bem; mas o que é realmente
interessante, como disse, não é quais direitos eles possuem ou não possuem, mas
a percepção de muita gente que parece lhes atribuir tais 'direitos', ou reconhecê-los
tacitamente. Pensem bem: se o cara carregado para fora da plenária do STF não
usasse cocar, teriam suas imagens - que ninguém me convence que não foram armadas
de antemão com algum fotógrafo solícito - comovido tanta gente? Teriam elas sido
veiculadas celeremente por aí pela internet, repositórios de comentários sobre
exclusão social? Não creio.
De
onde vem essa capacidade de mobilização do imaginário popular - pois imaginados
eram todos os comentários que vi a respeito das fotos, nos quais o Índio é
tomado como símbolo de algo maior que ele mesmo e seu cocar - que a imagem do
Índio circulando na internet parece possuir? Na minha opinião, ela vem da
concepção de sociedade brasileira - concepção extremamente arcaica e por isso
mesmo conservadora, reacionária - que nós guardamos carinhosamente bem no âmago
do nosso ser, naquele espaço instintual que resiste a toda e qualquer
racionalização. Ela é uma imagem inconsciente, um animus que nos mostra uma realidade psicológica que resistimos a
integrar na nossa apreciação racional do mundo. O Índio da nossa imaginação
mais íntima é antes de mais nada uma criança. Uma criança que somos nós mesmos.
Que
Índios sejam considerados crianças no pensamento político nacional não é, é
claro, nenhuma novidade. Eles o foram durante quase toda a história do país -
mais especificamente até a Constituição de 1988 - e continuam a sê-lo por todos
aqueles setores da sociedade (em especial os indigenistas mais retrógrados)
para os quais a Constituição jamais penetrou na cabeça. Esta é a origem das
políticas paternalistas que tratam os Índios como 'incapazes' e portanto
desculpáveis quando - por exemplo - interrompem julgamentos do STF. Mas acho
que o que está em jogo aqui é mais que isso. Se assim não fosse, como entender
que pessoas jovens, progressistas, não vinculadas ao pensamento indigenista
tradicional nem ao conservadorismo político, se comovam tanto com as imagens do
sujeito de cocar sendo posto pra fora do recinto do STF, a ponto de as replicar
sem ao menos verificar o porque da coisa? Gente que em outros instâncias se
pauta por comportamentos críticos mas aqui, de repente, abandonam toda a
capacidade crítica para usar as imagens do Índios expulso como símbolo de todas
as mazelas do país?
Não,
acho que há algo mais por detrás disso e creio que o lugar para procurar este
algo mais está naquela parte de nossos serem que não atende aos apelos da
razão. Que não é crítica simplesmente porque nós a isolamos e protegemos da
nossa capacidade de apreciação crítica. Nestes campos inconscientes do nosso
ser - de nossos seres - nós somos crianças. Nos relacionamos com o Estado como
crianças frente a pais severos e (ocasionalmente) protetores. Creio que vem daí
nossa relação 'filial' com o cargo de presidente da república, que vemos
(idealmente) como algo paternal, protetor, acima de congressos e juízes, algo
que vem para endireitar o torto, consertar o errado, trazer a ordem para o
mundo. Nossa 'pátria' - que em português, paradoxalmente é feminina: a
mãe-pátria - tem um esposo que é o Grande Provedor, Aquele Que manda na Casa.
Nosso Presidente Imperial - a encarnação do Estado na pessoa - é um Pai, um
Protetor.
Porém,
é complicado assumir isso ao nível da consciência. Aqueles que militamos pela
democratização das estruturas do Estado dificilmente nos sentiríamos
confortáveis em assumir a posição de filhos reclamões de um Estado-pai. Daí a
utilidade da figura do Índio, este sim facilmente assimilável ao papel de
criança - uma criança política, que em sua 'inocência' pode se mostrar no papel
infantil que nós mesmos autocriticamente recusamos a nós mesmos. O Índio é um
Outro - logo, distante de nós - que pode de maneira segura encarnar nossa
própria infantilidade frente ao Estado. E podemos nos regozijar de suas
atitudes 'inocentes' como se estas fossem nossas próprias: nosso desejo negado,
encoberto.
Projetamos
no Índio sendo expulso do STF nosso próprio desejo de sermos tutelados - isso
é, de sermos tratados como crianças rebeldes, mas amadas - pelo Estado-pai
contra o qual nos insurgimos em nossa vida consciente de militantes políticos e
cidadãos. Daí, creio, a revolta viva contra as imagens veiculadas na internet,
como se elas representassem realmente uma transgressão aos direitos do Índio -
e aos nossos.
Muitos
Índios - que não são crianças, nem inocentes, mas muitas vezes são agentes
políticos refinados - com certeza percebem, ainda que de forma difusa, essa nossa
tendência a projetar sobre eles uma parte de nós mesmos que temos dificuldade
em assumir racionalmente. E a utilizam em suas manifestações políticas. Algumas
vezes de maneira inescrupulosa, como creio que é o caso destas imagens
veiculadas na internet do Índio sendo expulso do STF.
Na
real, não se trata de nada além de alguém perturbando um julgamento que foi
posto pra fora. Se algum dos votos dos ministros fosse contra as cotas 'raciais'
- que aliás incluem também Índios - e o cara de cocar tivesse feito sua
'manifestação' durante este voto, teria sido transformado em mártir, em símbolo
da luta pelas cotas. Mas isso não aconteceu e ele se deu mal. A permanência
dessas imagens na internet e os comentários associados a elas não tem, por isso
mesmo, nada a ver com a questão das cotas. Tem a ver conosco. E em algum
momento teremos que assumir isso.