Um dia desses, voltando de uma reunião no Rio, comprei no aeroporto um livro de bolso para me distrair na viagem maçante de volta, que envolvia uma dessas conexões eternas em algum lugar ainda mais distante do ponto de chegada do que meu ponto de partida original. Era um livro de Bret Easton Ellis, seu primeiro: Abaixo de Zero (que na verdade deveria se chamar 'Menos que Zero' de acordo com o título original, Less than Zero, o que faria mais sentido). Não conhecia o autor - sou conservador para autores novos e carente de autocrítica o suficiente para achar 'novo' um autor praticamente da minha idade - mas li na contracapa, tarde demais (depois de haver pago) que era o autor de American Psycho, cuja versão para o cinema havia visto. E não havia gostado. Não havendo nenhum outro título que me fosse interessante na banca de jornais do Galeão, me resignei a transformar minha perda em investimento e abri o livro.
Gostei dele. A prosa rápida me lembrava algo que não consegui definir até ali pela metade do volume, por volta da terceira hora da minha espera pela conexão. A princípio, a história de adolescentes ricos de Hollywood, drogados, pansexuais e sem alma - acho que é a melhor definição que me vem à mente para seus personagens - me foi meio repulsiva. Certamente não pelas drogas e sexo baratos - bom, a cocaína não era tão barata assim - que transbordam do livro como molho em um cachorro-quente na madrugada. Tampouco pelas referências ao mundo MTV ou a bandas pop californianas meia-boca, ou coisas como estupros coletivos de garotas de doze anos. Nada disso é tão impactante assim pra quem viu coisa pior que estupros de crianças e bandas californianas meia-boca. Era mais pela grana. Grana alta, talvez o personagem mais presente no livro depois do alter-ego do autor, Clay, o narrador em primeira pessoa. Não podia deixar de pensar (sou um cientista social, afinal) que aquela demonstração constante de poder-grana, que dava porsches e BMWs e mesadas de quatro dígitos (em dólar - e dólar era chique,então) a adolescentes sem idade para ter carteira de motorista, era feita com a miséria de países como o que eu vivia, então - a ação se passa no natal de 1985 - quebrados, fodidos e tremendamente mal pagos, em cruzeiros.
Mas ainda assim a narrativa - sim, a narrativa mais que a história, percebia então - me prendia a atenção. Não era, como Alberto Manguel disse a respeito de outra novela de Ellis, algo do tipo que a gente tem quando enfia o dedo na garganta. Não, certamente não era uma convulsão das entranhas. Isso é dado pela história que se conta, não pela forma de contá-la. E a história contada não me era tão pouco familiar assim, com sua trama de atividade pan-erótica, violência e cocaína, para que eu a achasse repulsiva. Mesmo reconhecendo nela a barbárie, esta não me era exótica o suficiente para provocar ânsia de vômito. Não, o que me atraía era a forma com que Ellis contava a história. Essa não era apenas uma história sobre Hollywood. Essa história contada, essa narração, era Hollywood.
Antes de mais nada, preciso esclarecer: não sou crítico literário. Sou leitor, ponto. Minha relação com a literatura está sempre do lado do - no interior do - mundo criado pela obra literária e resisto a qualquer tentativa de me arrancarem de lá através de analises críticas dos livros que leio. Leio até mesmo literatura-experimento textual com um esforço sincero - e normalmente infrutífero - de me entranhar no mundo da história, mais que na trama da narrativa. Mas sou um tipo de crítico de cinema, da escola de Halley - voltando a circular por aí depois de décadas nas quais me afastei do cinema em benefício (ou não) da antropologia. E o que chamou minha atenção foi precisamente isso na narrativa de Ellis: ela é cinema, antes de ser literatura.
Na verdade, acho que essa foi a primeira vez que entendi aquilo que Walter Benjamin dizia, que hoje - na modernidade atual, quer dizer - nós pensamos como cinema; nossas memórias e recordações nos vêm como um filme. Esse é o impacto que a manipulação narrativa da imagem na era da reprodução técnica tem sobre nós. Nós pensamos as imagens de nossa existência mais íntima como se fosse um roteiro de filme realizado em nossas mentes. Esse livro é precisamente isso: um texto à procura de imagens. Mais que isso, um texto construído como uma sucessão de imagens editadas em uma narrativa rítmica tipicamente cinematográfica hollywoodiana - mas com uma armadilha embutida.
A primeira coisa que atraiu minha atenção, imediatamente assim que li a primeira página - ou deveria chamá-la primeira sequência? - foi o tempo da narrativa. Um presente do indicativo que - vi depois - se repete ao longo de todo o livro, página a página. Como disse, não percebi o que era até mais ou menos a metade do livro, quando então a ideia pousou na minha mente com impacto pesado, parecido com o das rodas do avião na aterrissagem da primeira perna do meu voo de volta: esse é o tempo de um roteiro. O presente do indicativo eterno, que se sucede a cada nova cena descrita e que corresponde ao croqui do story-board que orienta o diretor na filmagem da sequência. Cada 'sequência' da narrativa de Ellis tem unidade dramática; elas se fecham sobre si mesmas, como as sequências em um roteiro. Completas, elas são sempre no presente do indicativo, usualmente na primeira pessoa do singular. Isso também se mostrou bastante revelador: se transformadas em imagem, estas sequências teriam certamente um narrador em off, narrando na primeira pessoa do singular o desenrolar da cena. Exatamente como em um filme noir de John Houston. Gale Cengage (em uma crítica aqui) afirmou que a prosa de Ellis guarda similaridades com a de Raymond Chandler, o que aparentemente não foi confirmado pelo autor. Acho que a similaridade não está na prosa de Chandler, mas justamente na prosa filmada dele e de outros romancistas noir. É à imagem noir, não ao texto noir, que se assemelha a narrativa de Ellis.
E não para aí. Há no livro momentos em que personagens rememoram coisas acontecidas em um tempo anterior ao da narrativa. Esses flashbacks - no sentido cinematográfico - são uniformemente narrados no pretérito. São sempre dependentes da narrativa-mestre no presente do indicativo, sendo introduzidos em momentos em que detalhes desta evocam uma lembrança. Exatamente como em um filme hollywoodiano padrão. A impressão fílmica aqui é tão forte que eu era tentado a levantar os olhos quando um flashback irrompia na narrativa, como os personagens de filmes dos anos cinquenta. A bem da verdade, flashbacks normalmente são escritos no presente do indicativo em roteiros; mas são precedidos do termo 'flashback' para identificar seu tempo passado, um recurso que Ellis não usa textualmente - mesmo porque ficaria extremamente artificial dentro de sua narrativa. Mas o passado simples, junto com o uso de itálicos, me parecem substitutos à altura, resolvendo o problema da indexação da cena ao passado diegético, ou ao da narrativa literária).
Para além das descrições que privilegiam a ação de personagens e o contexto imediato destas ações e do diálogo curto e seco, matter-of-fact, que acompanha a descrição da ação dos personagens, inclusive do alter-ego do autor, ambos típicos de roteiros hollywoodianos, outros elementos fílmicos encontram uma transliteração engenhosa para o plano da narrativa textual. O mais evidente é o que às vezes se chama em cinema de contraponto: uma ação se desenrola em uma tomada alternadamente a outra, normalmente sem impacto narrativo, que irrompe, por assim dizer, em fragmentos que pontuam a ação principal da tomada. Assim, por exemplo, a cena onde uma das personagens femininas dialoga com o alter-ego do autor e joga um cigarro quase inteiro no chão. Um cachorro come o cigarro e o vomita. A narrativa intercala o diálogo (e a descrição da cena) com trechos rápidos onde a ação do cachorro é descrita em 'flashes' rápidos 1) abrindo o cigarro com a boca; 2) começando a comer o cigarro; 3) terminando de comer o cigarro; e 4) regurgitando o cigarro. 1), 2) 3) e 4) são intercaladas na descrição da cena principal, de forma que quando o diálogo dos personagens acaba o trecho 4 da 'cena' do cachorro fecha a sequência narrativa.
Esse artifício narrativo é típico do cinema, tendo sido amplamente utilizado nos filmes americanos da época. Vejam que isso não se confunde com a montagem paralela 'clássica', onde duas cenas de igual importância para a narrativa são intercaladas, como na cena clássica da perseguição da diligência, de John Ford, onde cenas da diligência e dos índios se sucedem ritmicamente. Aqui, trechos da segunda cena, sem importância direta para a narrativa (mas às vezes simbólica, como comum em filmes noir - e que acontece também no livro de Ellis) apenas servem de contraponto ao desenvolvimento da ação significativa em termos diegéticos.
Mas toda essa aproximação com a narrativa fílmica guarda uma armadilha. E essa remete à unidade dramática do livro como um todo, em contraposição às suas 'sequências'. Porque enquanto as últimas tem sua unidade dramática definida precisamente em termos fílmicos, a obra como um todo não. Diferentes dos filmes padrão hollywoodianos - que tem uma estrutura narrativa rigidamente definida, com seu núcleo dramático definido a cerca de 3/4 do filme como um todo (quando as situações conflitantes de que é composto o drama 'se resolvem') e que conclui com o já conhecido e obrigatório 'final feliz' - a narrativa de Ellis é uma sucessão de 'tomadas' que reafirmam o mesmo conflito básico em diferentes contextos, encerrando - sem um ponto culminante, pecado mortal na fílmica hollywoodiana - com a constatação de que '...[e]ra hora de voltar. Estava há muito tempo em casa.'
O último, curto, parágrafo final, que se segue a essa conclusão, não descreve nenhuma cena visualmente, sendo um dos únicos do livro a não o fazer. Talvez seja também o único de todo o livro a evocar uma reminiscência sem o recurso da 'marca de flashback' e que começa no passado. A mudança, inusitada na narrativa, acontece justamente quando o personagem - ou seu alter-ego, o autor? Certamente não podemos afirmar aqui, como Chesterton, que a boa literatura diz a verdade sobre o personagem enquanto a má o diz sobre o autor - fala sobre... uma imagem evocada por uma música:
Há uma música que ouvi quando estava em Los Angeles, gravada por um grupo de lá. A música se chama "Los Angeles" e a letra e as imagens eram tão amargas e brutais, que a música reverberou na minha mente por dias. As imagens, descobri depois, eram pessoais e ninguém que eu conhecia compartilhava delas. As imagens que eu tinha eram de gente enlouquecendo por morar nessa cidade. Imagens de pais tão famélicos e frustrados que comiam seus próprios filhos. Imagens de pessoas, jovens, da minha idade, erguendo os olhos do asfalto e ficando ofuscados (sic) com o sol. Essas imagens permaneceram comigo depois de eu ter deixado a cidade.(...)
A evocação é significativa aqui. Feita após a conclusão da ação, ela adquire contornos de uma narrativa em off que acompanha a última cena, que conclui - como em um road movie - com a necessidade de voltar, de ir para longe da cena da narrativa, a cidade de Hollywood, descrevendo um momento no tempo que é posterior à ação mesma e confirma o deslocamento espacial do personagem. É, ademais, uma reflexão de caráter moral, a única de toda a narrativa. Esse recurso estilístico, típico - novamente - de filmes noir (e de muito do cinema dramático americano pós- filme noir). Tipicamente, seria uma narrativa em off na voz do personagem principal, que acompanharia a cena deste sumindo na distância, se afastando do local onde transcorreu a ação.
É na conjugação destes elementos - a descrição explícita de uma imagem evocada por uma música, um julgamento moral relativo precisamente ao tema central da narrativa - que Clay, alter-ego de Ellis, se revela como um 'homem em crise' vivendo uma 'vida mínima' para usar a expressão de Ortega e Gasset (como mostra Mike Grimshaw em seu excelente estudo, que pode ser visto aqui). Mas é aqui também que ele se mostra como um personagem (ou um autor?) à procura de uma unidade na narrativa de sua vida e de seu mundo. E essa unidade é dada pela evocação de uma imagem.
É essa imagem que preenche de significado a história contada - como em um 'mau' filme, sem desenvolvimento, sem ponto culminante, sem resolução do conflito, sem final feliz - através de um 'roteiro' que descreve um interregno de uma viagem. O período entre chegar à cidade e sair dela, marcado na narrativa precisamente pela primeira frase: 'As pessoas tem medo de mudar de pista nas vias expressas de Los Angeles', frase que o autor não compreende e cuja tradução não faz jus ao original: 'people are afraid to merge in freeways in Los Angeles'. O trocadilho é intraduzível aqui, mas essencial para a compreensão do livro. People are afraid to merge in freeways (in a free way?) in L.A. As pessoas tem medo de se unir de (maneira livre) em L.A. O livro começa com uma elocução - com a palavra falada - sobre a impossibilidade de se viver em comum com outros livremente em L.A.; e conclui com uma imagem - significativamente, gerada por uma música chamada igualmente Los Angeles - que sintetiza, como fazem as imagens, esta mesma impossibilidade. Uma viagem redonda, mas que não volta exatamente ao ponto de partida porque conclui com a obtenção de uma imagem sintética daquilo que antes era apenas palavras sem sentido.
Agora finalmente, Clay (ou Ellis?) entende. Porque tem uma imagem a lhe guiar, uma imagem que sintetiza esta cidade cujo business - que a torna ímpar no mundo - é justamente produzir imagens, estas imagens da era da reprodução mecânica que são justamente o marco de uma modernidade que não mais tem o sustento (e já não o tinha no tempo da narrativa, a era Reagan, quando a vida americana se transformava num gigantesco filme hollywoodiano de mau gosto) das ilusões que a tornavam até então aceitável, palatável. O que Clay - e Ellis - vislumbram aqui é a modernidade nua, sem subterfúgios, que devora eternamente seus próprios filhos e da qual não mais nos livramos. Como ele coloca ao final do parágrafo - e do livro:
(...) Imagens tão violentas e malignas que pareciam ser meu único ponto de referência por muito tempo. Depois que parti.
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