sábado, 14 de abril de 2012

Europa e a ameaça do terceiro mundo: pulsações do desejo - e da falta dele.

Uns tempos atrás, fui (mais ou menos) surpreendido por um vídeo da União Européia - que circulou bastante na internet - que retratava uma Europa mulher e semi-virginal (embora já de certa idade) acossada por três personagens facilmente identificáveis com o Brasil (um crioulo jogador de capoeira), Índia (um espadachim misterioso) e China (um lutador de artes marciais super-cool). E dona Europa lá no meio dessas figuras, senhora de si, dominando a situação ameaçadora. Um vídeo institucional cujo objetivo explícito era incentivar a união da União, cada vez mais desunida pelas diversas crises que a assolam: financeira, política, econômica, militar, institucional e (fica claro no vídeo) ideológica. Talvez nunca antes na história daquele continente (rsr) a Europa tenha compartilhado tanto entre seus membros, ainda que apenas crises. 
Mas o que chama a tenção mesmo é o tom de ameaça do vídeo. Porque nós, terceiro mundo, somos a ameaça. Ameaça pelo crescimento econômico (o vídeo sugere isso), conjugado à crise européia. O resultado disso é um vídeo curiosamente racialista - como aliás quase tudo que a velha Europa produz em termos de discurso social ultimamente (o vídeo pode ser visto aqui). Mas também um discurso explicitamente sexualista: Uma mulher de certa idade - cerca de trinta e poucos anos, uma mulher madura - cercada por homens racialmente diversos dela e entre si (mas todos racialmente  identificáveis: não-brancos, não-europeus) e aparentemente mais jovens. Bombas de testosterona cercando uma Europa aparentemente sem manifestações hormonais quaisquer. Situação no mínimo inusitada: a Europa, que nos fodeu ao longo dos últimos séculos (a brasileiros e latino-americanos em geral, a chineses, indianos e asiáticos em geral), temendo um estupro coletivo por aqueles que foram por ela estuprados ao longo da história. 
Por si só isso já seria interessante: hegemonia e contra-hegemonia no segundo tempo do jogo. Mas tem mais, bem mais. Europa mostra sua cara nesse vídeo curiosamente simbolista - explicitamente simbolista, que lança mão de recursos simbólicos para passar sua mensagem e, nesse ínterim, propaga - como sói acontecer com frequência nesses casos - mais símbolos que os explicitamente desejados. Coisas de uma libido coletiva em crise afetiva que recorre a símbolos arcaicos para expressar sua voz abafada pelas convenções sociais e políticas. E o faz muito bem, por sinal. O resultado é um vídeo recheado de elementos psicanalíticos, para os quais gostaria de oferecer uma análise preliminar aqui. Atentemo-nos para os elementos do vídeo tais como aparecem em ordem cronológica no desenrolar da ação:


 1) Europa é uma mulher passiva, não faz nada; 


2) os homens ameaçantes são todos com evidente apeno sexual: um chinês cool, um indiano 
    misterioso, um brasileiro testosteronado; 


3) Ao ser cercada pelos homens, Europa se auto-replica, criando outras exatamente iguais a 
    ela (veja que o princípio masculino incorpora a diversidade, enquanto que o feminino não 
    - Europa é homogênea); 


4) Europa forma um círculo em volta dos homens (símbolo feminino), que se sentam e 
    perdem sua posição ereta. O indiano embainha sua espada. O sentido sexual aqui é 
    evidente; 


5) a imagem formada é uma fortemente simbólica: um triângulo (princípio masculino) 
   formado pelos homens sentados, envolvido por um círculo, símbolo feminino. O princípio
   masculino no interior do princípio feminino: o símbolo corresponde àquele
   da fecundação; 

    1. uma ausência é conspícua aqui: a da Rússia, único dos BRICs q efetivamente já fodeu diversas vezes com a Europa (militarmente, em especial: ou seja, pela maneira simbolicamente mais masculina possível depois do coito em si mesmo, e associada diretamente a este). A repressão do elemento que evidenciaria a relação simbólica, transformando-a em quase literal, é reveladora.

O princípio masculino, no entanto, é emasculado: Europa necessita ser fecundada - fecundada pela diversidade contida no princípio masculino e que lhe falta - mas apenas em condições de domesticação deste princípio, que no entanto ao ser domesticado perde sua capacidade de movimento, sua virilidade mesma. Temos aqui uma relação de double bind, o duplo vínculo da teoria antropológica e da psicologia da esquizofrenia, seguindo Gregory Bateson: Europa busca o Outro e tem medo dele (Europa os abraça ao replicar-se mas vemos receio em sua atitude); precisa do Outro para fecundá-la mas sob condições que castram o princípio masculino e tornam a fecundação pouco provável; a fecundação é a única ação de Europa que envolve o princípio fecundador formando um círculo em torno dele, mas é uma ação feita a partir da passividade mesma, a partir da replicação desta mesma passividade. 
Europa veste amarelo. A cor, evidentemente, remete à riqueza: a cor do ouro. Mas o amarelo tem uma longa história de ambiguidade na simbologia européia das cores. Na idade média, atores representando um personagem morto em uma peça usualmente vestiam amarelo. Amarela era também a cor da cruz pintada na porta das casas onde havia sido registrada a presença da peste negra; da mesma forma, na frança a porta da casa de um criminoso condenado era pintada de amarelo. Carrascos usavam amarelo na Espanha e durante o jugo nazista da Europa, judeus era obrigados a usar braçadeiras amarelas. Mesmo sendo a cor do ouro - e por extensão da prosperidade - o amarelo tem um significado mais profundo que emerge em associações como na expressão 'yellow journalism' em inglês, equivalente à 'imprensa marrom' da língua portuguesa; e na expressão 'yelow streak', q designa uma pessoa á qual falta coragem: alguém que 'amarela', como também dizemos. Não é portanto surpresa que a cor amarela, que no feng-shui chinês simboliza a estabilidade, a solidez, seja na Europa associada tradicionalmente à mentira, traição, à morte, a ponto de dar o cognome ao personagem do escritor britânico (e racista declarado) Sax Rohmer, criador da expressão 'perigo amarelo' (yellow peril'), usada para designar o 'satânico Dr. Fu Manchu'. Como vemos aqui pela convergência espontânea de significados, é este segundo sentido reprimido que predomina no vídeo, não o sentido de prosperidade, do ouro que cada vez mais escorre pelas mãos de uma Europa incapaz de mantê-lo (ou seja, o sentido explícito do vídeo, presente no enredo do mesmo, de competição comercial metaforizada explicitamente com os três países do terceiro mundo).
Todo o vídeo leva à constatação que Europa precisa do Outro diverso, mas tem medo dele. Mas não vive sem ele. Mas só o aceita se ele for absorvido em seu interior. Mas essa absorção leva à mesma passividade inicial de Europa. Uma situação típica do double bind batesoniano. Curiosamente, isso acontece justamente em um vídeo que busca mostrar a Europa como auto-suficiente, capaz de resolver seus próprios problemas sozinha...
O vídeo foi retirado de circulação acusado de racismo. Mas eu diria que ele não é exatamente racista, mesmo que tente sê-lo - de maneira 'politicamente correta' como é aceitável para racismos europeus, sempre envolvidos em considerações sobre 'diversidade cultural', que é como o racismo 'civilizado' se manifesta na Europa hoje em dia, trocando o termo 'raça' por 'cultura'. Ele é essencialmente um vídeo sobre a impotência européia, onde o personagem Europa, em seu silêncio - ela não emite um som sequer durante o vídeo, como se não fosse capaz de vocalizar sua real situação, colocá-la em palavras - manifesta o oposto: um grito desesperado de socorro expresso em sua incapacidade de mover-se, em sua frigidez, na cessação do movimento e do desejo: na vitória de Tanatos sobre Eros. Ou seja, na morte que se aproxima.
Que a terra lhes seja leve.

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