Uns
tempos atrás, fui (mais ou menos) surpreendido por um vídeo da
União Européia - que circulou bastante na internet - que retratava
uma Europa mulher e semi-virginal (embora já de certa idade)
acossada por três personagens facilmente identificáveis com o
Brasil (um crioulo jogador de capoeira), Índia (um espadachim
misterioso) e China (um lutador de artes marciais super-cool). E dona
Europa lá no meio dessas figuras, senhora de si, dominando a
situação ameaçadora. Um vídeo institucional cujo objetivo
explícito era incentivar a união da União, cada vez mais desunida
pelas diversas crises que a assolam: financeira, política,
econômica, militar, institucional e (fica claro no vídeo)
ideológica. Talvez nunca antes na história daquele continente (rsr)
a Europa tenha compartilhado tanto entre seus membros, ainda que
apenas crises.
Mas
o que chama a tenção mesmo é o tom de ameaça do vídeo. Porque
nós, terceiro mundo, somos a ameaça. Ameaça pelo crescimento
econômico (o vídeo sugere isso), conjugado à crise européia. O
resultado disso é um vídeo curiosamente racialista - como aliás
quase tudo que a velha Europa produz em termos de discurso social
ultimamente (o vídeo pode ser visto aqui).
Mas também um discurso explicitamente sexualista: Uma mulher de
certa idade - cerca de trinta e poucos anos, uma mulher madura -
cercada por homens racialmente diversos dela e entre si (mas todos
racialmente identificáveis: não-brancos, não-europeus) e
aparentemente mais jovens. Bombas de testosterona cercando uma Europa
aparentemente sem manifestações hormonais quaisquer. Situação no
mínimo inusitada: a Europa, que nos fodeu ao longo dos últimos
séculos (a brasileiros e latino-americanos em geral, a chineses,
indianos e asiáticos em geral), temendo um estupro coletivo por
aqueles que foram por ela estuprados ao longo da história.
Por
si só isso já seria interessante: hegemonia e contra-hegemonia no
segundo tempo do jogo. Mas tem mais, bem mais. Europa mostra sua cara
nesse vídeo curiosamente simbolista - explicitamente simbolista, que
lança mão de recursos simbólicos para passar sua mensagem e, nesse
ínterim, propaga - como sói acontecer com frequência nesses casos
- mais símbolos que os explicitamente desejados. Coisas de uma
libido coletiva em crise afetiva que recorre a símbolos arcaicos
para expressar sua voz abafada pelas convenções sociais e
políticas. E o faz muito bem, por sinal. O resultado é um vídeo
recheado de elementos psicanalíticos, para os quais gostaria de
oferecer uma análise preliminar aqui. Atentemo-nos para os elementos
do vídeo tais como aparecem em ordem cronológica no desenrolar da
ação:
1)
Europa é uma mulher passiva, não faz nada;
2)
os homens ameaçantes são todos com evidente apeno sexual: um chinês
cool, um indiano
misterioso, um brasileiro testosteronado;
misterioso, um brasileiro testosteronado;
3)
Ao ser cercada pelos homens, Europa se auto-replica, criando outras
exatamente iguais a
ela (veja que o princípio masculino incorpora a diversidade, enquanto que o feminino não
- Europa é homogênea);
ela (veja que o princípio masculino incorpora a diversidade, enquanto que o feminino não
- Europa é homogênea);
4)
Europa forma um círculo em volta dos homens (símbolo feminino), que
se sentam e
perdem sua posição ereta. O indiano embainha sua espada. O sentido sexual aqui é
evidente;
perdem sua posição ereta. O indiano embainha sua espada. O sentido sexual aqui é
evidente;
5)
a imagem formada é uma fortemente simbólica: um triângulo
(princípio masculino)
formado pelos homens sentados, envolvido por um círculo, símbolo feminino. O princípio
masculino no interior do princípio feminino: o símbolo corresponde àquele
da fecundação;
formado pelos homens sentados, envolvido por um círculo, símbolo feminino. O princípio
masculino no interior do princípio feminino: o símbolo corresponde àquele
da fecundação;
- uma ausência é conspícua aqui: a da Rússia, único dos BRICs q efetivamente já fodeu diversas vezes com a Europa (militarmente, em especial: ou seja, pela maneira simbolicamente mais masculina possível depois do coito em si mesmo, e associada diretamente a este). A repressão do elemento que evidenciaria a relação simbólica, transformando-a em quase literal, é reveladora.
O princípio masculino, no entanto, é emasculado: Europa necessita ser fecundada - fecundada pela diversidade contida no princípio masculino e que lhe falta - mas apenas em condições de domesticação deste princípio, que no entanto ao ser domesticado perde sua capacidade de movimento, sua virilidade mesma. Temos aqui uma relação de double bind, o duplo vínculo da teoria antropológica e da psicologia da esquizofrenia, seguindo Gregory Bateson: Europa busca o Outro e tem medo dele (Europa os abraça ao replicar-se mas vemos receio em sua atitude); precisa do Outro para fecundá-la mas sob condições que castram o princípio masculino e tornam a fecundação pouco provável; a fecundação é a única ação de Europa que envolve o princípio fecundador formando um círculo em torno dele, mas é uma ação feita a partir da passividade mesma, a partir da replicação desta mesma passividade.
Europa
veste amarelo. A cor, evidentemente, remete à riqueza: a cor do
ouro. Mas o amarelo tem uma longa história de ambiguidade na
simbologia européia das cores. Na idade média, atores representando
um personagem morto em uma peça usualmente vestiam amarelo. Amarela
era também a cor da cruz pintada na porta das casas onde havia sido
registrada a presença da peste negra; da mesma forma, na frança a
porta da casa de um criminoso condenado era pintada de amarelo.
Carrascos usavam amarelo na Espanha e durante o jugo nazista da
Europa, judeus era obrigados a usar braçadeiras amarelas. Mesmo
sendo a cor do ouro - e por extensão da prosperidade - o amarelo tem
um significado mais profundo que emerge em associações como na
expressão 'yellow journalism' em inglês, equivalente à 'imprensa
marrom' da língua portuguesa; e na expressão 'yelow streak', q
designa uma pessoa á qual falta coragem: alguém que 'amarela', como
também dizemos. Não é portanto surpresa que a cor amarela, que no
feng-shui chinês simboliza a estabilidade, a solidez, seja na Europa
associada tradicionalmente à mentira, traição, à morte, a ponto
de dar o cognome ao personagem do escritor britânico (e racista
declarado) Sax Rohmer, criador da expressão 'perigo amarelo' (yellow
peril'), usada para designar o 'satânico Dr. Fu Manchu'. Como vemos
aqui pela convergência espontânea de significados, é este segundo
sentido reprimido que predomina no vídeo, não o sentido de
prosperidade, do ouro que cada vez mais escorre pelas mãos de uma
Europa incapaz de mantê-lo (ou seja, o sentido explícito do vídeo,
presente no enredo do mesmo, de competição comercial metaforizada
explicitamente com os três países do terceiro mundo).
Todo
o vídeo leva à constatação que Europa precisa do Outro diverso,
mas tem medo dele. Mas não vive sem ele. Mas só o aceita se ele for
absorvido em seu interior. Mas essa absorção leva à mesma
passividade inicial de Europa. Uma situação típica do double bind
batesoniano. Curiosamente, isso acontece justamente em um vídeo que
busca mostrar a Europa como auto-suficiente, capaz de resolver seus
próprios problemas sozinha...
O
vídeo foi retirado de circulação acusado de racismo. Mas eu diria
que ele não é exatamente racista, mesmo que tente sê-lo - de
maneira 'politicamente correta' como é aceitável para racismos
europeus, sempre envolvidos em considerações sobre 'diversidade
cultural', que é como o racismo 'civilizado' se manifesta na Europa
hoje em dia, trocando o termo 'raça' por 'cultura'. Ele é
essencialmente um vídeo sobre a impotência européia, onde o
personagem Europa, em seu silêncio - ela não emite um som sequer
durante o vídeo, como se não fosse capaz de vocalizar sua real
situação, colocá-la em palavras - manifesta o oposto: um grito
desesperado de socorro expresso em sua incapacidade de mover-se, em
sua frigidez, na cessação do movimento e do desejo: na vitória de
Tanatos sobre Eros. Ou seja, na morte que se aproxima.
Que
a terra lhes seja leve.
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