quarta-feira, 31 de julho de 2013

Uma noite qualquer, na aldeia

     Olhava o céu cheio de estrelas e pensava, elas todas existem também na minha cidade, claro, mas a gente não vê. Claro né, que coisa idiota pra se pensar, mas em que mais a gente vai pensar depois de seis meses ininterruptos morando em uma aldeia Indígena? Estou acostumado com um pouco mais de movimento, sei lá, mais o que fazer. Tirando a caçada da semana passada, onde quase levei um tiro por acidente, nada muito emocionante pra se fazer por aqui ultimamente. Tem horas que esse papo de trabalho de campo é um pé no saco, principalmente depois de tanto tempo, pensou, aborrecido. 

Para dissipar os pensamentos negativos, concentrou no guerreiro do seu lado, pernas abertas e braços cruzados, olhando para o céu. Pensativo, aparentemente, ou apenas entediado como eu? Sei lá, fala pouco, o cara. Melhor nem perguntar. Caladão, por isso mesmo bom caçador, pensou, mesmo que quase tenha me matado ao atirar naquele mutum bem na minha frente. Bom, o cara era gente boa, não é? Não só não me matou como ainda dividiu o mutum contigo. I-pôk, pelo meio, coisa que tem seu peso simbólico aqui. Simbólico e prático, já que mutum não tem tanto assim o que comer, ave pequenininha, menor que uma galinha d'angola. Que você, claro, dividiu com os amigos como um bom antropólogo, pensou - ou como um bom amigo, sei lá. Quatro comendo meio mutum. Vida de antropologo tem dessas coisas, pensa. Com um suspiro. 

Mas deixa esse papo pra lá, melhor se concentrar no céu. Aliás, no céu não, no Bep-Týk olhando o céu. A volta do parafuso antropológico. Ele parece estar mesmo olhando o céu, pensa. Quer dizer, olhando de verdade e não simplesmente usando aquela visão - ele não deixava de achá-la maravilhosa, por mais banal e frequente que fosse - como desculpa para olhar pra dentro de si mesmo, pensar um pouco na vida, no universo e em tudo o mais. Como ele mesmo estava fazendo, percebeu. Ou será que? Com um certo choque, percebeu que estivera fazendo ambas coisas havia algum tempo. Indistintamente. Há algo a se aprender aqui, decidiu. Ou não. Sei lá, penso nisso outra hora. Agora, melhor concentrar no cara e no céu.

     Notou que a atenção dele estava mesmo no céu, que ele prescrutava com olhar atento de caçador. A mesma atenção que havia visto em seus olhos atrás do buraco do cano da espingarda doze, quando se abaixou instintivamente e que continuava lá, mirando um pouco à sua frente, logo após o disparo. Olhando para o mutum como agora olhava para o céu. Na falta do que fazer, e do que falar, resolveu apelar para a boa e velha mimese. Postou-se ao lado dele, pernas entreabertas, olhar atento perscrutando não sabia o que no céu estrelado, braços cruzados sobre o peito. Melhor que isso só em desenho animado, pensou. Afinal de contas, o que seria da atnologia Indígena sem uma forte dose de bom humor? Essencial para o trabalho de campo, principalmente depois de seis meses de aldeia. 

     Parece ter dado certo: Bep-Týk lentamente separa os lábios e pronuncia duas palavras: kuben koikwa. Nem por um momento desvia sua atenção do céu estrelado, seus olhos de caçador espreitando as estrelas como se mutuns estivessem escondidos ali, ao alcance de seu tiro. À sua volta uma brisa fresca começa a agitar as folhas na cabeceira da pista de pouso deserta, o pio lúgubre de uma coruja acrescentando um toque fantasmagórico à cena.

      Duas palavrinhas curtas. Seu significado era claro: 'kuben' era 'estranho', 'branco'. 'Koikwa', 'céu'. Céu de branco, de não-Índio. Significado claro, sentido obscuro. Lembrou de Gadamer. Com raiva. Quero mais que a hermenêutica vá pro inferno, pensou. Coisa mais idiota pra se lembrar numa hora dessas. Ou em qualquer hora. Enfim. Voltemos ao guerreiro. Aqui, parado ao lado dele, mesma pose, mesma atitude, mas quanta diferença. Duas palavras erguem uma muralha entre nós. Talvez para minha vantagem, afinal. Porque parece haver algo importante nisso aí. 

     Sua mente voa para longe. Para seu orientador, sua deadline para submissão da tese (aproximando perigosamente) e seu projeto de pesquisa. Afasta com um pestanejar a imagem da colega sueca que pegava três vezes por semana, quando o noivo missionário e babaca estava fora encontrando deus em algum canto úmido daquele país chuvoso no qual fazia os créditos do doutorado - meus orixás, mais de seis meses sem mulher, nessa aldeia... ê vida difícil essa de antropólogo, meu - e concentra a atenção na teoria. Isso é papo cosmológico, pelo jeito. Assunto meio batido mas vá lá, de repente rende alguma coisa interessante. Melhor prestar atenção.

     Parado ali, do lado de Bep-Týk, não pode deixar de notar que a noite parecia mais escura de repente, como se a sombra de Àk Kumrentx, o urubu-rei, houvesse se abatido sobre a terra. The world has come to a standstill, pensou em inglês, quase praguejando em voz alta - em português - contra o tempo passado no Reino Unido estudando antropologia. Ao mesmo tempo, maravilhando-se com a capacidade da mente em se ajustar às condições do pensamento: pensava em inglês ao pensar em antropologia, muito evidentemente porque escrevia suas notas de campo em inglês.  Pra não esquecer a língua. Porque tinha que escrever uma tese em inglês, cujo deadline se aproximava cada vez mais. Como um assassino se aproximando lentamente em um plano de profundidade de um filme de Tsukamoto. Melhor pensar em outra coisa.

     A pista de pouso lhe parecia mais deserta que nunca; até o vento havia parado. Reparou pela primeira vez que os morros gêmeos à esquerda da pista tinham a forma exata dos peitos de Ulla, quando a favor da gravidade. Twin peaks, mellon-shaped. De novo a sueca baixinha e faladora tomou sua mente. Engraçado: sempre pensara em suecas como mulheres grandes e experts em sexo, coisa dos filmes e revistas pornô de sua adolescência. Ulla, a primeira sueca que conhecera (no sentido bíblico, claro - sempre achara essa expressão meio cômica), tinha pouco mais de um metro e sessenta e não era exatamente boa de cama; salvava o interesse sempre presente por sexo - coisa rara entre as mulheres naquela cidade do interior da Escócia onde estudava. 

     Lembrou do amigo espanhol que tinha convencido uma inglesa a visitar sua cama, depois de quase um mês de seca ao chegar lá. Dez minutos pra levar pra cama, menos que isso pra sair dela. Quando perguntou como havia sido a coisa, Juan havia respondido filosoficamente: compañero, mejor que hacerse la paja - creo. Com Ulla pelo menos não tinha disso. Da pista de pouso podia ouvir o barulho da aldeia a menos de quinhentos metros dali. Era noite de festa e os homens mais velhos estavam ensaiando com os mais jovens a musica que iam cantar no aminh aprã, o ponto culminante da festa que aconteceria após a caçada coletiva em alguns dias. Deixou que o som da música, forte e rítmica, expulsasse os peitos de Ulla da sua mente. 

     Vontade de mijar. O barulho de um bicho qualquer no canto da pista, perto mas não o suficiente para que precisasse se preocupar. Um barulho voador, bem distante. Lembrava um carro. Claro que não era. Avião, a essa hora? Traficante, com certeza. O sul do Pará era cheio de fazendas de boi branco, imensos latifúndios cuja única renda vinha das pistas de pouso clandestinas. O barulho lhe lembrou por vias tortas o amigo Dan, colega canadense de doutorado cujo hobby era mijar nas maçanetas dos carros de luxo estacionados na frente das residências estudantis posh daquela universidade para ricos no interior da Escócia. Juntos haviam mijado em porsches, mercedes, rolls-royces, ferraris, lamborghinis dos estudantes riquinhos. Dan se gabava de ter mijado no carro do príncipe de Gales, que estudava em nosso departamento. Mas não achava que fosse verdade: tinha sempre guarda-costas em volta do carro. 

     Varreu mais esses pensamentos da cabeça e olhou para Bep-Týk do seu lado. Melhor levar isso aqui a sério. Uma tese pode render, talvez? Um artigo certamente. Mil elocubrações teóricas passaram em um flash pela sua cabeça, afastando definitivamente a sombra dos peitos de Ulla que insistiam em se fundir aos morros gêmeos ao lado da pista de pouso. Cosmologias de contato interétnico. Mitologia sobre o Homem Branco, esse ser onipresente - infelizmente. Idéias e autores e teorias pipocavam em sua cabeça, céleres. E artigos, bolsas, congressos. 

     Okapa, vamos dar então à coisa a seriedade que ela merece. Ali, ao lado do guerreiro silencioso, braços cruzados, face inescrutável mirando o infinito, inabalável como o monolito de 2001 de Kubrik, traçou mentalmente o plano de trabalho. Lentamente, pronunciou as palavras ditas por Bep-Týk. Kuben koikwa... Sem deixar de mirar o céu, dando à voz apenas uma leve entonção de curiosidade, como aprendera com os mais velhos ali na aldeia.

     Aj, assentiu o guerreiro, também sem desviar seu olhar da imensidão celeste. Coração batendo um pouco mais rápido, fez a pergunta importante: myj-na kuben koikwa? 

     Julgou ter detectado na face de pedra de Bep-Týk, apenas julgou, não tinha certeza, um pequeno movimento no canto esquerdo da boca, um leve esgar de um sorriso suprimido, quando ele respondeu: é satélite, kuben, nunca viu não, é?

segunda-feira, 29 de julho de 2013

'Porque Mérito, Nós Temos!' Sobre Mérito, Antropologia, Concursos e o Século XIX Dentro de Nós

     Nota recente da ABA - Associação Brasileira de Antropologia, aconselhando departamentos de universidades ofertando vagas para antropólogos que não restrinjam a inscrição a portadores de diploma de graduação em ciências sociais (veja aqui a nota), despertou pela primeira vez - talvez devido ao clima político recente, quem sabe - manifestações corporativistas da parte de antropólogos e supostos antropólogos, em uma paródia do movimento dos médicos coxinhas da avenida Paulista, que reivindicam a exclusão de pós-graduados em antropologia vindos de outras áreas. Um abaixo-assinado no site avaaz.org (aqui, ó) circula para este fim, com caloroso apoio de concurseiros aparentemente temerosos da concorrência.

     Na refrega corporativista, até eu fui atingido. Ao tentar argumentar em um grupo de discussão do Facebook voltado para a comunicação de antropólogos e afins, tive meus posts recortados, deturpados e reaproveitados em um trabalho de bricolagem marqueteira (aqui) - numa espécie de atualização virtual de atuações cômico-folclóricas de novelas kitsch de Dias Gomes -  em um 'Blog do Máík (sic) Oliveira', de um ex-aluno do curso de graduação (licenciatura) em ciências sociais da UESC - Universidade Estadual de Santa Cruz (Ilhéus-BA) - no qual seu administrador, após paradear toda sua erudição antropológica em exatas 26 linhas, termina com a manifestação prototípica dos corporativistas: 'Porque, mérito nós temos!'.

     Creio que o evento é revelador e gostaria de pautar por ele minha argumentação. O referido curso - do qual sou professor, aliás - é um curso de licenciatura, voltado para a formação de professores de sociologia do segundo grau. Tem em sua grade curricular quatro matérias de antropologia. Isso não é de forma alguma incomum, ou mesmo indesejável. A formação de professores de sociologia para o segundo grau é uma necessidade real e não há nenhum demérito em criar um curso para atender à mesma. Aliás, esse é um dos objetivos centrais dos atuais cursos de ciências socais que não possuem diferenciação interna em áreas de formação. Como é o caso do curso da UESC. 

     Isso acontece porque 'ciências sociais' não existe como área de formação. Existem sociologia - área de concentração da esmagadora maioria dos cursos de ciências sociais pelo país -  ciência política e antropologia, estas sim áreas de conhecimento definidas ao longo do século XX e reunidas, no caso do Brasil (e apenas deste país, aliás) em um único curso de graduação, que se complementa com a formação pós-graduada nas respectivas áreas temáticas. Cursos de graduação em ciências sociais jamais foram pensados e criados para formar antropólogos; quando muito, o foram para formar sociólogos, que tiveram grande penetração no serviço público nos anos setenta no brasil, devido à própria conjuntura política de então, marcada no serviço público por um tecnocratismo autoritário que buscava 'soluções técnicas' para as questões sociais e políticas brasileiras. Quando muito, o curso de graduação em ciências sociais serviria para fornecer noções básicas das outras áreas, vistas então como 'inaplicáveis', como desprovidas de utilidade prática. serviriam então para formar massa crítica para as nascentes pós-graduações que seriam formadoras de acadêmicos apenas. Cursos de outras áreas das ciências sociais, como administração, economia e direito, foram classificados como 'ciências sociais aplicadas', para diferenciá-los dos primeiros.

     Os tempos no entanto mudaram. Com o fim da ditadura e a redemocratização do país, a antropologia passou a ser requisitada como atividade aplicada. A afirmação dos direitos diferenciados (Indígenas, negros, de minorias, de mulheres, etc); o reconhecimento da importância da cultura no contexto dos direitos (patrimônio imaterial, cultura dos grupos formadores da nacionalidade brasileira, etc), praticamente impõe a necessidade de antropólogos para a realização dos estudos necessários ao cumprimento destes direitos. 

     Esta valorização da atividade profissional do antropólogo - que acontece desde o começo dos anos 90, com as primeiras tentativas de colocar em prática a letra da Constituição Federal aprovada em 1988 - finalmente parece ter sido percebida pelos antropólogos em universidades, com os vinte anos de atraso que parecem ser a regra no meio acadêmico brasileiro. Começa, finalmente, a surgir cursos de graduação em antropologia, essenciais para atender à demanda constitucional de defesa de direitos diferenciados e de direitos culturais da sociedade brasileira. 

     No meio do caminho, ficou a pedra dos cursos de ciências sociais. Desde a sua criação, estes foram construtos artificiais do ponto de vista do conhecimento: 'ciência social' simplesmente não existe enquanto tal, não correspondendo a nenhuma forma de conhecimento concreta da realidade. Cada uma das 'ciências' (coloco entre aspas porque a antropologia mesma rejeita, em sua grande maioria, o rótulo de 'ciência'), ao longo do século XX, constituiu-se em uma forma diferenciada de investigar a realidade social/cultural humana, com temáticas, objetivos e formas de fazer distintas. Com a redemocratização do país, a constituição dos cursos de ciências socais também passou a revelar a artificialidade que preside sua definição enquanto não-área. 

     Tomemos como segundo exemplo, para aclarar este ponto, um curso de ciências sociais como o da UnB, que já a partir do segundo ano diferencia entre as áreas de concentração, o que faz com que seus estudantes tenham em seu currículo a maioria das matérias feitas na área de escolha, qualquer que seja ela. Este curso, no qual um estudante fará, digamos, dois terços das matérias (pelo menos) na área de concentração 'antropologia', dará direito ao mesmo a um diploma de 'ciências sociais' (a 'área de habilitação' sendo atestada por um carimbo no verso do mesmo). Diploma idêntico ao do estudante da UESC, que cursou ... quatro matérias de antropologia em sua vida acadêmica. A artificialidade do rótulo 'ciências sociais' se torna aqui não apenas evidente, mas gritante. Assim como o ridículo daqueles que afirmam, de peito cheio, 'mérito, nós temos!'. Vê-se claramente aqui que mérito real, no que tange à formação em antropologia, existe apenas naqueles cursos que, criando desde o início a diferenciação na formação de estudantes de sociologia, antropologia e ciência política, buscam eliminar a artificialidade do curso de 'ciências sociais', tornando este um rótulo que mais atrapalha do que ajuda a formação acadêmica de seus estudantes.

     Gostaria aqui de fazer uma reflexão sobre esse 'mérito'. Uma reflexão antropológica, que procure compreender os sentidos atribuídos a este 'mérito' que à primeira vista parece completamente deslocado no contexto da afirmação: afinal, que mérito é esse que permite a alguém que cursou quatro disciplinas em uma determinada área - menos que o número de disciplinas optativas feitas por quaisquer estudantes de outros cursos, que poderiam ser todas na área de antropologia, por exemplo, perfazendo um total maior que as do blogueiro da UESC - se arrogar um mérito profissional que estudantes de outros cursos só se arrogam após vinte, trinta disciplinas cursadas? Seria algum tipo de condição intelectual ou cognitiva adversa que leva um comentador deste mesmo blog a afirmar, 'então também posso medicar', se comparando a médicos que passam seis anos de suas vidas estudando matérias de sua área?

     Não creio que a questão seja esta. Na verdade, desconfio que o sentido atribuído aqui ao termo 'mérito' é inteiramente outro. Trata-se daquele sentido utilizado no Brasil patrimonialista do século XIX, onde o 'deproma' era pouco mais que a condição formal para se ascender a determinado cargo público, entendido como uma sinecura: uma posição na qual o indivíduo recebia benesses estatais sem a contrapartida de qualquer exercício profissional.relevante.

     Me parece portanto que tratamos aqui, não de uma questão intelectual ou cognitiva, mas de uma questão moral. Trata-se, creio, do exercício de uma moralidade oitocentista que busca no Estado um fonte de espaços apropriáveis individualmente, do monopólio de privilégios negados a outros independente da capacidade concreta - do mérito, entendido em seu sentido literal. 'Mérito', assim, adquire um sentido antitético ao sentido usual do termo, tornando-se uma senha para que grupos de pretendentes a novos 'bacharéis da república' se apropriem privadamente do bem público. 

     Cabe-nos aqui perguntar: como é possível que em um país que finalmente parece ter-se conscientizado de que está no século XXI - com mais de uma década de atraso - como nos mostra o recente movimento popular que tomou as ruas e a consciência nacional, ainda há espaço para tais arroubos oitocentistas? Sim, porque como demonstram as recentes manifestações de médicos coxinhas e de lideranças evangélico-fascistas pelo país afora, isto não é uma idiossincrasia de indivíduos de rincões impermeáveis ao século XXI (e ao século XX), mas um fenômeno bem mais geral. Essa sim, é uma questão séria para se pensar e este exemplo anedótico pode servir talvez para lançar alguma luz sobre os dilemas da atual sociedade brasileira.

     Como espero ter mostrado aqui, 'ciências sociais' simplesmente não existe, nem como área de conhecimento, nem em termos concretos como curso específico. Afinal, para ser algo é necessário, aristotelicamente, ser igual a si mesmo e isso 'ciências sociais' não é: o estudante da UESC, com suas quatro matérias de antropologia no currículo, não pode se comparar em termos de formação em antropologia, ao estudante da UnB que faz quase todo seu curso na área específica de antropologia. Tudo que estes tem em comum é um nome escrito em um pedaço de papel colorido. Afirmar que a existência deste pedaço de papel os torna idênticos é um arroubo de mentalidade oitocentista verdadeiramente deplorável em um país que se pretende parte de seu tempo. 

     Gostaria de deixar claro, quanto ao tema inicial deste comentário, que mesmo que tivéssemos hoje no Brasil cursos de graduação em antropologia estabelecidos e em número suficiente para a formação de massa crítica, ainda assim eu seria contra restringir a inscrição em concursos para professor universitário a graduados em antropologia. Diferente do uso do termo empregado pelo estudante da UESC, defendo que concursos acadêmicos devem se pautar por mérito real, não formal. Isso em si mesmo reflete uma visão - espero - mais contemporânea do país e do mundo, cada vez mais necessitado de exercício acadêmico competente capaz de alavancar a inclusão social e de direitos de largas parcelas da sociedade brasileira. E é esta competência - este mérito, no sentido literal da palavra - que creio dever ser buscado em concursos acadêmicos. 

     Ao longo da história mundial e local da disciplina, pesquisadores e professores de antropologia foram provenientes das mais diferentes áreas de formação profissional e acadêmica: filosofia, literatura, biologia, matemática, física, engenharia, medicina, história, geografia, artes, música e por aí vai: a lista é grande. Departamentos de antropologia - bons departamentos de antropologia, quero dizer - no Brasil assim como pelo mundo afora jamais criaram tais restrições artificiais e sempre tiveram - e têm atualmente - em seus quadros pesquisadores e professores com as mais variadas origens acadêmicas. O que apenas enriquece a disciplina, diga-se de passagem.

     Acho compreensível que potenciais concursandos temam a concorrência de colegas vindos de outras áreas de formação. Estivesse no lugar deles eu também temeria. Afinal, gente que saiu de sua área, muitas vezes sem sequer uma disciplina na área de antropologia, concorreu com gente com diploma em ciências sociais em seleções de pós-graduação, onde via de regra se cobra uma carga de leituras extremamente pesada - e ainda assim passou, cursou e concluiu sua pós-graduação, bom, o mínimo que podemos dizer é que eles são BONS, muito bons. Provavelmente acima da média. Por isso mesmo acho que concursos acadêmicos não apenas devem, mas precisam incluir tais candidatos. A menos, é claro, que a instituição acadêmica em pauta não tenha interesse em bons profissionais. Algo que acho inadmissível nos dias de hoje.

     (Apenas para constar: não estou argumentando em causa própria. Minha graduação foi em ciências sociais. Por isso mesmo sei do que falo. Fiz o equivalente a sete disciplinas de antropologia em minha graduação, o que me deixou apenas a certeza de não saber virtualmente nada de antropologia, além do desejo de conhecer mais. Atitude, pelo visto, um pouco menos popular hoje em dia.)

segunda-feira, 22 de julho de 2013

O Médico e o Monstro - ou Por Que não Acredito que o Programa Mais Médicos Dará Certo com Médicos Brasileiros

     Quase trinta anos atrás, na primeira semana de aulas de um dos cursos de graduação que frequentei, conheci na fila da lanchonete Mário Cézar, um calouro de medicina que ao longo do tempo se tornou meu melhor amigo, até sua morte trágica anos depois. 

    Cézar, que como eu havia cursado física anteriormente, havia mudado de curso porque queria ser clínico geral. Seu ídolo era um seu tio, conhecido clínico geral em nossa cidade e dono de grande reputação na área de semiologia médica. Era capaz, segundo Cézar, de diagnosticar uma doença com incrível precisão a partir de uma entrevista minuciosa e longa com o paciente, depois da qual solicitava os exames necessários para verificar seu diagnóstico. Dificilmente errava. 

     Quando terminou sua graduação, Cézar me confessou estar decepcionado. Dizia que não havia aprendido praticamente nada de semiologia médica na faculdade. Passou o resto de sua vida se aperfeiçoando por conta própria nisso.

     Semiologia médica é um termo que a princípio parece estranho. Junta algo que reconhecemos como parte das ciências humanas - semiologia é a ciência que estuda signos e suas manifestações - com medicina, a qual nos acostumamos a considerar como na vizinhança da biologia. 

     Isso porque semiologia médica é justamente aquilo que torna a medicina humana - ou antes, que a torna medicina, no sentido hipocrático: a capacidade de perceber na pessoa os indícios da doença. O foco da semiologia médica (e, por extensão, da clínica geral) é a pessoa, não doença. A doença é o objetivo final que se pretende atingir, a partir da atenção minuciosa, detalhada na pessoa, seu corpo e os processos deste. 

     Desde os tempos em que Cézar foi  estudante nos anos 80 - e ainda mais depois sua morte - a tecnologia médica criou muitos mais aparelhos que representam (normalmente de forma visual) a doença. Mais e mais a semiologia médica foi perdendo espaço em uma medicina super-tecnologizada que prometia substituir a capacidade de interpetação humana por meios supostamente objetivos de reconhecimento da doença. Avanços tecnologicos como cintilografia, ressonância magnética, tomografia computatoriada substituiriam, no limite, inclusive os próprios médicos.

     O problema é que essa promessa era (e é) de certa forma mal-intencionada. Essa substituição da capacidade médica de interpretar sinais da doença no corpo humano, mesmo que real - e há sérias dúvidas com relação a isso - só seria possível com injções maciças de capital. Cada máquina descrita acima tem altíssimo custo de aquisição, operação e manutenção. 

     Isso, é claro foi um prato cheio para incrementar ainda mais a transformação da medicina em um negócio altamente lucrativo: médicos ricos (e a maioria dos que estudam medicina vem até hoje de famílias de posses) se transformaram em gigolôs de 'máquinas diagnósticas'. 

     Apesar de a participação do médico no processo diagnóstico diminuir cada vez mais (sendo crescentemente substituida pela atividade dos operadores das 'máquinas diagnósticas'), por uma questão de deficiência da definição jurídica, o processo continuou a ser descrito como 'atividade médica' - coisa que ele é cada vez menos, tendo-se transformado em um lucrativo ramo empresarial de alta tecnologia. 

     Isso gerou uma forma de perversão capitalista na atividade médica: hoje em dia, médicos não mais fazem longas consultas. Nem sequer falam ou olham para os pacientes. O móvel disso não é o desinteresse (embora este esteja obviamente presente), mas a ignorância. Médicos simplesmente não sabem mais o que perguntar, não têm idéia do que deveriam observar. Uma consulta de mais de dois ou três minutos seria certamente marcada por um silêncio embaraçoso.

     Isso porque o que se chama - erradamente - 'consulta' é pouco mais que um processo de triagem cada vez menos dependente da semiologia médica, cada vez mais burocratizado, cujo objetivo único é, crescentemente, saber a qual máquina ou teste diagnóstico o paciente será encaminhado. 'Médicos' se transformam cada vez mais em empresários - donos das máquinas - ou em burocratas que alimentam a demanda das máquinas, ou em vendedores de seus serviços. Entre uns e outros, a responsabilidade pelos elementos essenciais à atividade diagnóstica fica cada vez mais nas mãos do operador da máquina, normalmente um técnico mal pago e nem de longe tão bem formado quanto deveria para realizar tarefa tão essencial.

     A perversão desse processo vem não só da óbvia clivagem de classe, mas da sua submissão a uma lógica da demanda econômica. Imaginem uma cidade do interior do Amazonas, por exemplo, com uns 3, 4 mil habitantes. Nenhum hospital privado jamais compraria máquinas táo caras para atender a tão poucos - e a tão pobres - porque não teria retorno econômico suficiente para justificar sua aquisição, ou manter seu funcionamento, dentro de uma lógica empresarial capitalista. Elas não dariam lucro suficiente. Tampouco Estado algum - seja Brasil, Suíça, Suécia - tem condições reais de comprar e manter conjuntos cada vez mais caros de máquinas diagnósticas em uma quantidade tão grande de municípios pequenos, pobres e isolados como os encontrados no Brasil, país continental com problemas à altura de seu tamanho.. 

     A questão é que isso não é de forma alguma inevitável. 'Máquinas diagnósticas' deveriam servir para subsidiar a atividade diagnóstica de médicos, não substitui-la pelo trabalho dos técnicos operadores destas máquinas. Deveriam ser usadas para aqueles - digamos - dez por cento dos casos em que o exame do paciente pelo médico não é capaz de realizar o diagnóstico. Não para os 90% dos casos em que o 'médico', extremamente mal-formado em semiologia, é incompetente para reconhecer na pessoa o signo como índice de uma doença ou de outro problema qualquer.

     Por trás do discurso xenofóbico do CFM - conselho federal de medicina - e de sindicatos médicos, esconde-se assim uma verdade cruel: não são os médicos cubanos que são mal-formados, mas os médicos brasileiros. Quando médicos protestam que não têm condições de trabalhar em locais do interior que 'não têm estrutura', de certa forma estão dizendo a verdade, porque é a isso que eles se referem. A falta de esparadrapo e gaze é para eles irrelevante: seu grande temor, na verdade, é revelar sua monumental ignorância de semiologia médica, resultado de uma formação que privilegiou o negócio  e não a pessoa e transformou os médicos em burocratas ou em vendedores de serviços médicos - ou em empresários destes serviços. 

     Hoje, quando dizemos que 'o médico' fez o diagnóstico de uma doença, usamos a mesma metonímia que usamos quando dizemos que 'a Ford' fez o carro que guiamos. Não foi 'a Ford' que fabricou o carro, mas os milhares de trabalhadores da montadora de onde ele saiu. Não foi 'o médico' que fez o diagnóstico, mas uma miríade de técnicos e outros trabalhadores, desde a fabricação até a operação da máquina diagnóstica utilizada, cuja demanda ele alimentou, cujos serviços ele vendeu. 

    Da mesma maneira que 'a Ford', 'o médico' se transformou ao longo do tempo e uma entidade metafísica burocrático-gerencial-empresarial, baseada na divisão entre força de trabalho e meios de produção. É essa divisão que o CFM e os sindicatos de médicos tentam desesperadamente manter, por todos os meios inclusive alguns anti-éticos, como o boicote ao programa Mais Médicos através da inscrição fraudulenta nele. Aqueles que o fazem, fazem-no como empresários (e trabalhadores/vendedores de empresas), não como médicos. 

     Há aí um erro óbvio de classificação jurídica. Estamos tratando aqui com um monopólio que deveria ser submetido às leis anti-truste. Não são sindicatos de profissionais liberais com quais o Estado trata, mas associações patronais das quais também participam os empregados e vendedores autônomos das empresas médicas.

     Não estou sugerindo que as máquinas deveriam ser abolidas. Elas são essenciais - como auxiliares do diagnóstico médico, não como suas substitutas. O uso das máquinas diagnósticas deveria ser para tornar a percepção do médico capaz de ir mais além, mas terminou por substituir, progressivamente, a capacidade interpretativa deste. A conivência do ensino de medicina no Brasil com esse processo de transformação da profissão em uma atividade empresarial criou médicos incapazes de exercer realmente a medicina sem subordinarem-se às máquinas. Como em uma distopia da ficção científica, os médicos tornaram-se apêndices das máquinas. Daí o pânico mal disfarçado de médicos ao lhes ser sugerido que trabalhem... sem as máquinas. Apêndices são apêndices. Não sobrevivem sem o organismo que lhes dá a vida (vida profissional, no caso). 

     Não acredito que o programa Mais Médicos dará certo. Não com médicos brasileiros, pelo menos. Eles são mal-formados demais para trabalhar como médicos de verdade. Eles não o são, em grande medida: são um misto de burocratas e caixeiros-sedentários (uma vez que não viajam...), alimentando a demanda e vendendo produtos de empresas de prestação de serviços médicos. Para caminhar em direção à resolução do dilema da assistência médica para a população pobre do Brasil, será necessário uma profunda intervenção saneadora do Estado na formação dos médicos.
 
     Ela precisa novamente se transformar em uma profissão que lida com pessoas, não com o lucro. 

Vivemos aqui uma situação clássica d'O Médico e o Monstro. Da mesma maneira que na história de Stevenson, os dois são a mesma pessoa. É preciso escolher um dos dois - e da mesma maneira que na história original, deixar o poder de escolha nas mãos do Monstro e de seus representantes (CFM e sindicatos) é receita de desastre. 

quarta-feira, 17 de julho de 2013

O Dia que o País Ficou Lúcido e Entrou no Século XXI - e Descobriu que o Establishment não Gosta de Lucidez, nem do Novo Século



Definitivamente, o Brasil entrou no século XXI. Uruguai e Bolívia não estão mais sozinhos na América do Sul. Também como nesses países, boa parte da população - e a grande maioria dos analistas - não admite isso.
Por aqui, os grupos organizados na resistência ao novo vão de evangélicos a partidos políticos, curiosamente unidos na tentativa de evitar que o século XXI se instale definitivamente na vida cotidiana das pessoas.
O Brasil finalmente conseguiu o que queria: chegou ao primeiro mundo, reproduzindo aqui os mesmos conflitos hoje vigente nos EUA/Europa: a luta contra o neoliberalismo, chamada nos EUA de 'anti-globalização' e denominada, mais acertadamente, pelos seus militantes de alterglobalização.
O atraso de sua chegada ao Brasil se deve principalmente ao PT, que - num último estrebuchar da política do século passado - conseguiu por uma década convencer a população que era, de fato, diferente dos outros partidos defensores da política neoliberal. Coisa em que ainda há quem acredita, por incrível que pareça, após mais de uma década de provas em contrário. Normal: também em lugares como o Egito pensou-se que haveria alternativas institucionais - lá, o 'islamismo moderado' - ao neoliberalismo e seu reflexo político, chamado (erroneamente, a meu ver) 'nova ordem mundial'.
Curiosamente, Mohamed Morsi, que caiu esses dias atrás após a maior manifestação de massa já vista na história da humanidade, que colocou 17 milhões de pessoas na rua e alterou a face política do país, se comparava a Lula. Se declarava, também como Lula, um moderado, daqueles - também como Lula - que usam o 'mas' como cláusula atenuante: Morsi era 'islâmico' mas moderado, da mesma forma que Lula era 'de esquerda' mas moderado. Ambos eram - certamente devido à sua 'moderação' - apoiados por expressivos setores da elite de seus países.
Mas acabou. Como no resto do planeta, no Brasil o movimento é essencialmente apartidário e mesmo antipartidário (para desespero de cientistas políticos e dos partidos políticos) e identifica - muito acertadamente, aliás - no establishment político como um todo e não nas cliques que o operacionaliza em um determinado momento seu principal inimigo. 'Golpe da direta!' bradam os governistas do 'PT; 'golpe da esquerda!', bradam os governistas do PSDB/DEM/etc. Só isso já indica o desespero do establishment como um todo frente a um movimento que não pode ser cooptado (porque não tem 'lideranças'), que não pode ser comprado (porque luta por coisas concretas e continua lutando até que elas sejam atendidas), que não pode ser esmagado (porque aumenta com a repressão).
O que vemos hoje é uma tentativa orquestrada do establisment político - esse monstro amorfo cuja manifestação político-institucional pode ser chamada 'PTMSDEMB & apêndices' - de recuperar o controle do processo político nacional, que lhes fugiu das mãos. Isso, com auxílio igualmente desesperado da mídia (ela própria atacada nas manifestações, numa demonstração de rara consciência política das massas) e da 'justiça'.
Nos últimos poucos dias, vimos as tropas de choque do establishment - as da PM, as internéticas, as políticas - em ação para tentar acabar com o movimento que colocou em cheque isso que muita gente chama 'democracia representativa', que corresponde à parte visível, à ponta do iceberg d' O Grande Conchavo dos Rabo-Preso, a forma específica do pacto social no Brasil.
Nas últimas semanas o povo se rebelou contra isso. Sim, contra isso. E sim, rebelião.
Rebelião porque esta é a forma de súditos se manifestarem. Não somos cidadãos, somos súditos de um estado imperial. Nossa forma específica de participar da vida pública, ou ao menos uma delas, é a rebelião. Como na Inglaterra dos anos 80-90 e suas rebeliões contra a pool tax, nas quais boa parte de Londres foi posta abaixo para que os súditos do reino fizessem seus governantes sentirem que não estavam brincando e esperavam mudanças imediatas.
E sim, foi por causa disso. Porque este movimento - sim, no singular - é essencialmente (sim, isso mesmo, essencialmente) um movimento moral, não político. O establishment sabe disso; não é à toa que uma campanha de internet contra os anarquistas, e em especial contra o grupo Anonymous, que reúne grupos que organizam as manifestações anti-capitalismo no mundo todo, bate repetidamente neste ponto: chamando-os 'fascistas' por escancararem que há um problema moral sério na vida política atual, que é sua própria existência enquanto tal. O establishment sabe que o problema é ele próprio e sabe que o povo já sabe disso. Daí a virulência do ataque. Também sabe que o povo sabe que os partidos políticos - todos - são parte do establishment e não são confiáveis, daí seu ataque igualmente virulento ao fato de essas manifestações serem organizadas pela internet, sem participação de 'instituições representativas'' - já que é a própria noção de representatividade política que está completamente desacreditada. E isso os apavora.
Lula e seu marqueteiro, que articularam a reação do establishment contra o movimento, sabem disso. Por isso mesmo articulou o establishment em torno do combate à moral, em nome da política. De repente, todo o establishment visível - governo, partidos, redes de TV, jornais, cientistas políticos e outros analistas - começaram em uníssono a cobrar 'coerência' do movimento, a 'denunciar' ameaças de golpe, fascistas infiltrados 'cooptando' os que protestam?
Isso se chama marketing reverso: criar um pavor maior que a rejeição demonstrada. Antes de Lula, outro ilustre representante do establishment - um apresentador de TV chamado Datena - tentou a mesma coisa com o movimento e se deu mal. Lembram no começo da coisa toda, qdo o dito Datena, em seu programa, chamou uma pesquisa telefônica na qual solicitava que as pessoas dessem sua opinião sobre se concordava com as manifestações, mostradas por ele na TV? Pois é, deu 'sim' na cabeça. Ele então muda de tática e troca o texto da psquisa (olha a reversão aí!), por algo como 'você concorda com manifestação com baderna?'. Pois é, deu 'sim' na cabeça de novo.
Lula e seu marqueteiro tentaram o que Datena não conseguiu. E contaram com armas poderosas pra isso, que Datena não tinha: contaram com toda a mídia, além das polícias - além das PMs, a PF e os serviços 'de inteligência' adquiriram a partir daí notoriedade no cenário repressivo. Contou também com os analistas políticos, que passaram a assumir sua posição na linha de frente da força repressiva do establishment.
O ataque foi coordenado, com operações de idêntica natureza em quatro níveis distintos :
1. ao nível político, o discurso do establishment 'exigiu' dos manifestantes 'coerência', separando 'direita' de 'esquerda';
2. ao nível epistemológico, os analistas políticos bradaram contra a 'despolitização das massas' que não sabiam separar reivinsicações tópicas daquelas políticas;
3. ao nível midiático, a Gloriosa Mídia Livre fez das tripoas coração para diferenciar entre ''manifestantes' e 'baderneiros infiltrados' nas manifestações; e finalmente
4. ao nível policial, a separação entre 'baderneirros' e 'manifestantes' passa a ser usada como justificativa da repressão policial.
Não posso deixar de imaginar o sorriso lupino de Michel Foucault ao constatar que o bisturi analítico de (2) serve exatamente aos mesmos propósitos que o cassetete de (4). Aliás, os analistas políticos provavelmente sofreram mais que os outros soldados dessa tropa, imagino. Porque ao menos alguns deles também se preocupavam genuinamente em entender o processo e não apenas em reprimi-lo. E tentativas de compreensão abundaram, muitas delas incrivelmente cômicas, refletindo justamente a falta de capacidade dos analistas de abrirem mão de suas categorias de análise frente a uma realidade nova que se recusa a se reduzir a elas.
Assim, vemos marxistas da velha guarda afirmando que as manifestações foram inteiramente inócuas, não tendo nenhuma significação - uma opinião que reflete a meu ver simplesmente a fossilidade intelectual do analista, incapaz de entender o que tem pela frente. Vemos analistas conservadores incapazes de ver nas manifestações nada além de manifestações de ódio, uma interpretação que certamente não contou com o benefício da observação direta, nas ruas e que reflete de maneira inconsciente (creio) a campanha midiática contra o movimento.
O ataque como um todo tinha um objetivo claro: dividir, esquartejar. Do analítico ao policial, do político ao midiático, o objetivo era um só: separar o joio do trigo, ainda que as opiniões não coincidissem sobre qual era qual, exatamente. Esse fato é por si mesma revelador: mais importante que definir os mocinhos e os bandidos, o establishment se uniu para manter o enredo - com mocinhos e bandidos (e a promessa de um final feliz). E os ataques se concentraram, claro, naqueles que denunciavam explicitamente a artificialidade do roteiro: os anarquistas.
Na mesma semana - praticamente nos mesmos dias - (a) a PF invadiu (ilegalmente, aliás, comme il fault: sem mandado)  a sede da Federação Anarquista Gaúcha em Porto Alegre; (b) petistas iniciaram na internet uma campanha contra o Anonymous (que não é exatamente um grupo mas uma estratégia de luta de vários grupos autonomistas mundo afora), tachando-o de... fascista, justamente por (entre outras coisas) escancarar que a crise atual não é política mas moral, com todo o establishment envolvido; (c) policiais passam a se infiltrar nas passeatas, usando máscaras de Guy Fawlkes (símbolo mundial do movimento da alterglobalização desde os anos 90) e destruindo lojas e prédios públicos, na esperança de serem tomados por membros do Black Bloc, espécie de tropa de choque dos manifestantes da alterglobalização, que se especializa na ação direta como forma de proteção dos manifestantes quando atacados pela polícia (e que nunca atacam sem antes terem sido atacados); e finalmente (d) a mídia passa a veicular uma campanha de terror relacionada às manifestações, manipulando informações para fazer crer a seus espectadores/leitores/ouvintes que a fortíssima repressão policial que se seguiu, incrementada, a esse ataque era justificada por atos de vandalismo - que eram frequentemente criados pela própria polícia, ou que eram na verdade reações à repressão policial.
É preciso deixar claro aqui que os quatro níveis do contra-ataque do establishment que mencionei acima não estão em pé de igualdade entre si: política, mídia e análise articularam-se em torno da polícia, a quem coube a ação concreta de repressão direta que os ouros níveis apenas sugeriram ou propiciaram. E a polícia - em especial a PM - se articulou nacionalmente em uma mesma estratégia repressiva, sem distinção de partido ou ideologia: a PM de MInas Gerais e de São Paulo, estados governados pelo PSDB,  reprimiu usando as mesmas táticas das PMs do Distrito Federal e da Bahia, por exemplo, governados pelo PT. Da mesma forma que Record e Globo manipularam igualmente imagens de manifestações para insinuar que 'vândalos infiltrados' entre manifestantes atacaram pobres PMs de batalhões de choque pelo país inteiro, provocando deles reações inevitáveis. Da mesma forma que analistas políticos 'denunciaram', alarmados, golpes fascistas ou comunistas (a depender da ideologia do denunciante) que estariam sendo armados pelos 'organizadores secretos' das manifestações.
Por duas semanas o establishment mostrou a sua cara, una e coesa, por detrás do capacete e do escudo de sua encarnação concreta, o soldado do batalhão de choque da PM. Talvez a manifestação mais simbolicamente significativa tenha sido uma das mensagens da campanha de difamação do PT contra os movimentos autônomos agrupados sob o nome Anonymous: ao mesmo tempo em que os acusam de fascismo, por revelar a profunda crise moral das instituições políticas da atualidade, a mensagem (não guardei seu texto, reproduzo de memória) afirma sobre suas principais reivindicações, que elas não têm cabimento "porque são contra o artigo 'x' da lei 'y' ", num retrato tristemente revelador da condição do establishment 'de esquerda' no Brasil atual, reduzido a um legalismo institucionalista que em nada lembra as lutas sociais que um dia, há décadas atrás, o alçou à posição na qual se encontra hoje.
Frente ao ataque, o movimento fez algo inesperado (ao menos para os representantes do establishment): ele se dividiu... para conquistar. O movimento simplesmente comprou as provocações do establishment e dividiu-se. Mas não nas velhas e conhecidas linhas aplicáveis a movimentos sociais até então. Ele se dividiu em grupos de manifestações por reivindicações concretas palpáveis e vivemos durante duas semanas uma verdadeira intifada de manifestações, certamente menos magnificentes que as gigantescas manifestações que principiaram o movimento, mas com efeito igualmente devastador. Manifestantes pelo país afora ocuparam dezenas de câmaras municipais (uma espécie de reintegração de posse das casas do povo), sitiaram prefeitos corruptos em suas prefeituras, acamparam na porta de governadores e prefeitos. Atacaram partidos políticos e veículos da imprensa, ocuparam o congresso nacional, enfrentaram e em alguns lugares surraram a polícia, vários de cujos trabalhadores começaram a defecção para o lado dos manifestantes, expondo-se inclusive a castigos disciplinares. E quando se uniram em manifestações comuns produziram as maiores passeatas já vistas nesse país desde os anos 80, colocando mais de um milhão de pessoas na rua no Rio de Janeiro e acendendo a luz vermelha dentro do PT, partido cuja força sempre veio do aparelhamento dos movimentos sociais.   
Não creio que muitos tenham notado a coincidência temporal entre dois eventos aparentemente isolados que se deram durante estes dias, mas que adquirem significação - e uma significação particularmente irônica - quando confrontados um com o outro. O primeiro foi o chamado de Lula à militância petista para que tomasse as ruas, com um discurso alarmista contra uma suposta 'virada fascista da massa', exemplificada segundo ele (e segundo o coro de analistas políticos que o repetiram) pela rejeição da participação de militantes e partidos 'de esquerda' nas manifestações. O outro evento foi um 'manifesto à nação' lançado por um general de farda de flanela, conclamando a população a se unir contra o 'golpe comunista' que estaria sendo preparado pelo governo petista.
Colocados frente à frente os dois eventos se revelam um ao outro, não apenas em suas intenções instrumentais, manipuladoras, mas principalmente em sua incapacidade não só de entender mas principalmente de se comunicar com o novo movimento. De um lado um manifesto militar cuja linguagem é ininteligível mesmo a leitores cultos sem o auxílio de um dicionário de termos e expressões fora de uso corrente. Do outro, o espetáculo melancólico de um Lula tentando 'conclamar as massas' com um discurso sindicalista dos anos 80, claramente sem eco popular. Dois discursos especulares, que já foram em épocas passadas discursos de alto potencial comunicativo e que hoje se reduzem a linguagens-código compreendidas apenas pela caserna e pela militância instrumentalizada. Dois ecos do passado.
As imagens tristemente vazias do 'dia nacional de lutas' organizado pelo braço sindical do establishment e propagandeadas com estardalhaço pela Gloriosa Midia Livre (que fez exatamente o contrário do que tinha feito até então com as manifestações do movimento, inflacionando o número de manifestantes nas passeatas sindicais);  e da 'manifestação pela família' na Candelária, Rio de Janeiro (que parece ter contado com exatas 26 pessoas) estão aí para confirmar: nem uns nem outros são capazes de se fazer entender pela multidão. Sua crise é essencialmente hermenêutica, aquela que se abate sobre discursos que ficaram inexoravelmente ancorados no passado, prêsa de um mundo social - a base dos discursos, afinal de contas - que não existe mais.
Pois é. Aconteceu que naqueles dias de luta, a investida analítico-repressiva do establishment virou-se contra seus criadores. Ao se fragmentar em manifestações distintas, o movimento incentivou outros vários grupos de interesse a se manifestarem abertamente: médicos, policiais federais, empresários do transporte de carga (estes by proxy, através de seus empregados caminhoneiros), latifundiários tomaram também as ruas e estradas do país. Este é provavelmente o maior dano que se poderia causar ao establishment cuja estratégia operacional é baseada na indistinção, na confusão, no mélange. Este tropo discursivo, figura de linguagem central das narrativas sobre nação/povo/país brasileiros - que se espraia desde o 'tudo junto e misturado' dos programas da mídia até o 'governo para todos os brasileiros' do Planalto - foi momentaneamente suspenso, deixando entrever o establishment em toda sua obscura resplandecência: sindicatos e 'movimentos sociais' oficialistas, empresários, elites profissionais, políticas, jurídicas e do serviço público se revelaram abertamente num espetáculo grotesco que usualmente se esconde sob o manto da negociação parlamentar-palaciana, longe dos olhos incômodos do público.
Frente ao fortalecimento do movimento a face política do establishment encena um recuo estratégico, cedendo ao movimento em algumas de suas primeiras reivindicações, abaixando o preço das passagens e acenando com reformas políticas e com a promessa de atender as reivindicações dos movimentos sociais 'tradicionais' ainda existentes no Brasil: o movimento Indígena e o movimento camponês.  Instigados pelo que parece ter sido sentido como uma traição, outros componentes do establishment 'ganharam as ruas', com reflexos evidentes para o próprio movimento em termos identitários: ficou facil saber quem são o 'nós' e quem são o 'eles' depois disso. Ficou também evidente que mesmo os grupos que formam o establishment não acreditam mais na capacidade de as instituições políticas realizarem seus interesses às escondidas - o que se denomina usualmente 'sistema representativo'. O que é, evidentemente, compreensível: uma vez que as instituições políticas insinuam atender reivindicações populares, elas deixam automaticamente de atender aos interesses das elites que compõem o establishment.
Os eventos dos últimos dias revelaram também o calcanhar de Aquiles do establishment: aqueles que tanto bradaram por 'coerência' quando o movimento ganhou as ruas se revelaram incapazes eles mesmos dessa coerência. E isso tem-se visto, exemplarmente, nesses últimos dias: no mesmo dia em que a chefe do executivo recebe Indígenas em campanha contra um projeto de lei que pretende submeter o processo administrativo de demarcação de Terras Indígenas ao congresso nacional, o chefe deste mesmo congresso coloca o projeto na pauta de votação em regime de urgência - por pressão dos latifundiários. Em menos de 24 horas o governo federal volta atrás sobre trazer médicos cubanos para tentar salvatar algo da catástrofe em que se transformou a saúde pública brasileira - por pressão dos médicos. Ao mesmo tempo a popularidade da presidente despenca vertiginosamente, deixando entrever a possibilidade de a concertação vetero-conservadora que a mantém no poder se reagrupar em torno de uma alternativa neo-conservadora capitaneada por Marina Silva e seu novo partido, que se coloca como o novo campeão do capitalismo verde.
Sentindo a mudança dos ventos, Marina corteja o setor mais reacionário da atual clique governamental do establishment, a bancada de representantes evangélicos - o que, curiosamente, é 'denunciado' por petistas que, em um delírio esquizofrênico, parecem ignorar que os mesmos fazem parte de sua própria clique governista. Caso seja bem-sucedida, sua concertação reunirá sob a mesma clique grupos de empresários religiosos,  industriais e agro-empresários, junto com setores expressivos das elites profissionais, políticas, jurídicas e do serviço público, acobertados por uma nova versão do discurso da indiferenciação e da mélange que - eles esperam - seja capaz de novamente cativar o povo a participar dos rituais de legitimação institucional do establishment.
Por sua vez, Dilma Rousseff tenta desesperadamente recuperar a capacidade de seduzir a multidão a acreditar na mágica das instituições. Não acredito que aconteça. Ao cobrar do movimento uma coerência que ela própria não tinha, esta configuração específica do establishment parece fadada ao ocaso e ao esquecimento. Justamente - aqui volto à análise feita pelos grupos que se reúnem sob a identidade de 'Anonymous', algumas semanas atrás - porque a crítica do movimento (que se tornou a crítica da consciência nacional nas últimas semanas) ao establishment é moral. E uma coisa é regra em abordagens morais: o valor de um enunciado qualquer é diretamente proporcional ao caráter moral daquele que o enuncia. Em bom português: para se cobrar algo, é preciso ter moral para tanto. E neste pormenor a clique que opera presentemente o establishment está em falta. Presidente, governadores, prefeitos, parlamentares, etc, etc - nada disso convence mais, justamente porque a estratégia escolhida para esvaziar o movimento expôs, em toda sua nudez, a amoralidade de sua concertação. E isso é algo que 'democracias representativas' necessitam esconder a todo custo.
Claro, a amoralidade é uma característica da vida política - Maquiavel já deixou isso claro centenas de anos atrás. Mas a mágica do discurso da nação/país/povo consiste justamente em - entre outras coisas - esconder esse aspecto absolutamente essencial da vida política. E certamente ela se estende a toda a face política do establishment - o PTMSDEMB & apêndices. Mas a presidência da república tem um caráter especial nesse processo. Pontifex Maximus da concertação política do establishment (que inclui também a oposição, claro), a presidência brasileira é algo similar ao Rei da Floresta da mitologia antiga: sua conexão telúrica de certa forma garante que tudo vá bem na sociedade política institucional. Quando esta conexão (que é com o povo/país/nação encarnados, e é vista como uma conexão visceral com a brasilidade - Lula foi o exemplo vivo disso) é rompida, a ameaça paira sobre todo o establishment. E é necessário um novo soberano que garanta essa conexão com a Terra Brasilis mesma.
Se será ou não Marina Silva a desafiar Dilma e derrotá-la, se tornando a nova soberana - essa é uma questão menor, me parece.Aparentemente o establishment já se acalmou e voltou à sua 'normalidade'. Demandas foram canalizadas para canais institucionais que - como sói acontecer com eles - não funcionam, nunca funcionaram e não tem perspectiva de funcionar algum dia. Ninguém espera, por exemplo, que o congresso nacional, uma espécie de autarquia formada por diferentes grupos - boa parte deles criminosos, de uma ou de outra forma - que apenas defendem seus próprios interesses, vá reformar a si mesmo. Alheios a esta percepção por parte da consciência nacional, políticos parecem ter-se convencido que tudo está como dantes no quartel de Abrantes.
Nada mais enganoso, na minha opinião. Creio que para tornar clara de onde vem esta opinião seria necessário explicar como juntar coisas absolutamente díspares e tirar delas algum significado. Mas não sei fazer isso; isso pode ser mostrado, mas explicações serão sempre, desconfio, ex post facto: feitas sob encomenda para justificar algo que já passou e portanto suspeitas como explicação (embora produza-se boas interpretações assim, concedo). Seria como explicar os sabores do vento ou a sinfonia das cores, coisas que quem experimentou sabe como é mas dificilmente tem palavras para falar sobre. Afinal, o que parece haver de comum entre torcedores estraçalhando um juiz de futebol em campo, no Nordeste; trabalhadores bloqueando a via de acesso ao sítio de obras de Belo Monte para cobrar indenização de impacto ambiental/social não paga; manifestantes ocupando câmaras de vereadores por todo o país; a opinião pública que não abre mão de saber que político ou juiz viajou em que avião da FAB para onde, fazendo o que e gastando quanto de nosso dinheiro público. Como explicar o esvaziamento tanto das manifestações dos sindicatos pelegos quanto a 'marcha pela família'  de alguns dias atrás, ambos caricaturas grotescas de seus ancestrais na história do país, simulacros que simplesmente deram errado, incapazes de copiar eficazmente o modelo?
Na minha opinião, isso que está obviamente sendo encarado pelo establishment como a derrocada do movimento não é mais que um movimento esperado, uma certa alternância entre sístole e diástole, dois momentos e um mesmo processo. Que no contexto atual se afigura cada vez mais como a calmaria que antecede a tempestade, dado o evidente esquecimento por parte dos políticos (e outros agentes do establishment) de que há poucos, pouquíssimos dias atrás estavam todos com a faca no pescoço. E isso é uma coisa ruim de se esquecer, especialmente quando a faca, mesmo não sendo mais íntima de sua jugular, ainda está desembainhada.