quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Um jaguar, à luz da lua

Era uma dessas noites em que a lua cheia ilumina tão claramente a aldeia adormecida que quando você acorda não sabe se já amanheceu ou se você está sonhando. O círculo da aldeia, redondo e reluzente à luz do luar, parece a cena de uma fantasmagoria de Wegener. A luz pálida lhe empresta um tom sépia irreal que você poderia apreciar do camarote da varanda do posto de saúde onde está hospedado, vista completa e privilegiada do círculo da aldeia em toda a sua glória. Se você não estivesse dormindo agora - está mesmo? - quer dizer.

Você dorme profundamente - aparentemente, ao menos -  na salinha do posto, pequeno cômodo sem portas com a entrada voltada para dentro, para o corredor que dá para o pátio lateral. Como você repousa tão confortavelmente em um cômodo sem portas em uma aldeia Indígena - em uma aldeia não, na periferia imediata de uma, fora da segurança do círculo de casas - perdida na maior floresta do planeta? Mas a tranquilidade é só aparente, porque por trás de suas pálpebras um sono inquieto havia-se instalado, trazendo sonhos estranhos nos quais você não sabe exatamente se sonha ou se está ali, de pé na beira daquele círculo de casas que naquela luz parecem brotar do chão da forma mais improvável - mas não tão improvável quanto aquela onça pintada parada ali na sua frente, olhos curiosos fitando-o a menos de vinte metros de distância.

Ali, frente a frente com o jaguar improvável, passa por sua mente que aquela cena deveria ser vista em demi-plongé, naquele ângulo semi-divinal, etéreo, que Tarkovsky gostava de filmar seus personagens em momentos de humildade frente ao mundo. O jaguar o estuda, lentamente, seu olhar amarelo - de cor semelhante à luz que ilumina aquela cena, você não consegue deixar de pensar - percorrendo seu corpo da cabeça aos pés. Não só o corpo. O olhar do animal improvável desnuda sua alma, deixando-o exposto como uma criança recém-vinda ao mundo.

E agora você está ali, nu e só e indefeso, e aquele olhar amarelo está sobre você. Quanto tempo tudo isso dura? Você não sabe, nem sabe como está agora na cama, olhos abertos na escuridão observando os feixes de luz que o luar projeta no piso através das tábuas da janela e ouvindo aquele barulho de passos se afastando da sua janela em direção ao mato, passos humanos acompanhados daquele toc-toc de um bastão ou bengala batendo de leve contra o piso de cimento do pátio.

Você não sabe se tudo aquilo foi sonho, nem sabe o que dizer na manhã seguinte (você a aguardou acordado, ouvidos atentos, em seu quarto sem portas) quando os Índios excitados comentam sobre as pegadas de pés descalços encontradas na periferia da aldeia, ao lado de marcas redondas como as deixadas por um bastão daqueles que ajudam um velho a caminhar. E também de pegadas de onça, uma onça grande que parecia ter sumido no ar quando começaram as pegadas humanas acompanhadas do bastão, o andar de um velho. Aos poucos você decifra os pedaços de comentários que lhe chegam em ondas sucessivas e monta o quebra-cabeças de uma história sobre um velho wajangá, um xamã poderoso da época em que os avós dos habitantes atuais da aldeia viviam na mata sem contato com os brancos - apenas 'Índios selvagens não usariam chinelos para andar, no mato ou na aldeia - e que podia transformar-se em uma onça ao bater o pé no chão.

Vivendo no mundo dos jaguares por muitos anos, todos seus ombikwá, seus parentes e amigos, haviam morrido. O wajangá, no entanto, talvez sem perceber quanto tempo havia passado durante sua estada na floresta com os jaguares, visitava esporadicamente as aldeias de seu povo, saudoso daqueles que conhecera em sua vida como homem. Agora ele era um karõ, uma imagem do homem que um dia fora, desejoso de encontrar seus amigos e parentes e de compartilhar com eles algo da deliciosa refeição que trouxera da floresta dos jaguares. Mas os Índios sabem que os vivos comem com os vivos e os humanos com os humanos e que o wajangá, tanto tempo passado com os jaguares, agora é todo jaguar ou quase, apenas assumindo a forma de seu corpo humano para atrai-los para seu mundo, um mundo de presa e caçador, porque é assim que os jaguares são.

Você, é claro, não sabe o que pensar: não é bem o tipo de coisa que se ensina na escola de antropologia, a despeito de proverbiais relatos de avistamentos de magia Zande e congêneres. Sim, porque mesmo em seus devaneios mais simétricos e dialógicos e transculturais - e quaisquer outras metáfora indicadoras de um sonhado way out da disciplina - a antropologia permanece talvez a mais racionalista das disciplinas, sempre relegando sua não-razão ao nicho seguro do comentário en passant ou do pé-de-página out of joint.

Você não sabe novamente o que pensar, nem mesmo se há algo a ser pensado ou se seria melhor fazer coisa diferente, quando em outras aldeias em outros momentos da vida, mesmo já passados quase vinte anos, o mesmo sonho recorrente o encontra correndo pela floresta iluminada pela luz amarela da lua cheia dos olhos do jaguar, cada vez mais para dentro da mata, até que em um ponto improvavelmente escuro dela apesar da lua, você para e aguarda o jaguar que sabe que virá.



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