Era
uma dessas noites em que a lua cheia ilumina tão claramente a aldeia adormecida
que quando você acorda não sabe se já amanheceu ou se você está sonhando. O
círculo da aldeia, redondo e reluzente à luz do luar, parece a cena de uma
fantasmagoria de Wegener. A luz pálida lhe empresta um tom sépia irreal que
você poderia apreciar do camarote da varanda do posto de saúde onde está
hospedado, vista completa e privilegiada do círculo da aldeia em toda a sua
glória. Se você não estivesse dormindo agora - está mesmo? - quer dizer.
Você
dorme profundamente - aparentemente, ao menos -
na salinha do posto, pequeno cômodo sem portas com a entrada voltada
para dentro, para o corredor que dá para o pátio lateral. Como você repousa tão
confortavelmente em um cômodo sem portas em uma aldeia Indígena - em uma aldeia
não, na periferia imediata de uma, fora da segurança do círculo de casas -
perdida na maior floresta do planeta? Mas a tranquilidade é só aparente, porque
por trás de suas pálpebras um sono inquieto havia-se instalado, trazendo sonhos
estranhos nos quais você não sabe exatamente se sonha ou se está ali, de pé na
beira daquele círculo de casas que naquela luz parecem brotar do chão da forma
mais improvável - mas não tão improvável quanto aquela onça pintada parada ali
na sua frente, olhos curiosos fitando-o a menos de vinte metros de distância.
Ali,
frente a frente com o jaguar improvável, passa por sua mente que aquela cena
deveria ser vista em demi-plongé, naquele ângulo semi-divinal, etéreo, que
Tarkovsky gostava de filmar seus personagens em momentos de humildade frente ao
mundo. O jaguar o estuda, lentamente, seu olhar amarelo - de cor semelhante à
luz que ilumina aquela cena, você não consegue deixar de pensar - percorrendo
seu corpo da cabeça aos pés. Não só o corpo. O olhar do animal improvável
desnuda sua alma, deixando-o exposto como uma criança recém-vinda ao mundo.
E
agora você está ali, nu e só e indefeso, e aquele olhar amarelo está sobre
você. Quanto tempo tudo isso dura? Você não sabe, nem sabe como está agora na cama,
olhos abertos na escuridão observando os feixes de luz que o luar projeta no
piso através das tábuas da janela e ouvindo aquele barulho de passos se
afastando da sua janela em direção ao mato, passos humanos acompanhados daquele
toc-toc de um bastão ou bengala batendo de leve contra o piso de cimento do
pátio.
Você
não sabe se tudo aquilo foi sonho, nem sabe o que dizer na manhã seguinte (você
a aguardou acordado, ouvidos atentos, em seu quarto sem portas) quando os
Índios excitados comentam sobre as pegadas de pés descalços encontradas na
periferia da aldeia, ao lado de marcas redondas como as deixadas por um bastão
daqueles que ajudam um velho a caminhar. E também de pegadas de onça, uma onça
grande que parecia ter sumido no ar quando começaram as pegadas humanas
acompanhadas do bastão, o andar de um velho. Aos poucos você decifra os pedaços
de comentários que lhe chegam em ondas sucessivas e monta o quebra-cabeças de
uma história sobre um velho wajangá, um xamã poderoso da época em que os avós dos
habitantes atuais da aldeia viviam na mata sem contato com os brancos - apenas
'Índios selvagens não usariam chinelos para andar, no mato ou na aldeia - e que
podia transformar-se em uma onça ao bater o pé no chão.
Vivendo
no mundo dos jaguares por muitos anos, todos seus ombikwá, seus parentes e
amigos, haviam morrido. O wajangá, no entanto, talvez sem perceber quanto tempo
havia passado durante sua estada na floresta com os jaguares, visitava
esporadicamente as aldeias de seu povo, saudoso daqueles que conhecera em sua
vida como homem. Agora ele era um karõ, uma imagem do homem que um dia fora,
desejoso de encontrar seus amigos e parentes e de compartilhar com eles algo da
deliciosa refeição que trouxera da floresta dos jaguares. Mas os Índios sabem que
os vivos comem com os vivos e os humanos com os humanos e que o wajangá, tanto
tempo passado com os jaguares, agora é todo jaguar ou quase, apenas assumindo a
forma de seu corpo humano para atrai-los para seu mundo, um mundo de presa e
caçador, porque é assim que os jaguares são.
Você,
é claro, não sabe o que pensar: não é bem o tipo de coisa que se ensina na
escola de antropologia, a despeito de proverbiais relatos de avistamentos de
magia Zande e congêneres. Sim, porque mesmo em seus devaneios mais simétricos e
dialógicos e transculturais - e quaisquer outras metáfora indicadoras de um
sonhado way out da disciplina - a antropologia permanece talvez a mais
racionalista das disciplinas, sempre relegando sua não-razão ao nicho seguro do
comentário en passant ou do pé-de-página out of joint.
Você
não sabe novamente o que pensar, nem mesmo se há algo a ser pensado ou se seria
melhor fazer coisa diferente, quando em outras aldeias em outros momentos da
vida, mesmo já passados quase vinte anos, o mesmo sonho recorrente o encontra
correndo pela floresta iluminada pela luz amarela da lua cheia dos olhos do
jaguar, cada vez mais para dentro da mata, até que em um ponto improvavelmente
escuro dela apesar da lua, você para e aguarda o jaguar que sabe que virá.