quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Diante de Nós, o Wub, por Philip K. Dick (Tradução minha)


Este conto, o primeiro publicado por P.K. Dick, tem uma inspiração totalmente antropológica. Imagine um antropólogo encontrando-se com um nativo em um planeta estranho. E você é o nativo.




"O negligente wub poderia bem ter dito: muitos homens falam como filósofos e vivem como tolos."


Haviam quase terminado com a carga. Lá fora restava o Optus, seus braços cruzados, a cara fechada. O capitão Franco desceu descontraído a plataforma de carga, sorrindo.
“Qual o problema?” ele disse. “Vocês estão sendo pagos por isso tudo.”
O Optus não disse nada. Virou-se, juntando sua capa. O capitão pisou na beirada dela.
“Só um minuto. Não vá ainda. Eu não terminei.”
“Oh?” o Optus se virou, com dignidade. “Estou voltando à aldeia.” Ele olhou para os animais e pássaros sendo empurrados para a plataforma de carga, para dentro da espaçonave. “Preciso organizar novas caçadas.”
Franco acendeu um cigarro. “Por que não? Vocês podem ir lá no sertão e caçar isso tudo de novo. Mas quando nós estivermos a meio caminho entre marte e a terra –“
Sem dizem uma palavra, o Optus se foi. Franco se juntou ao tripulante no pé da plataforma.
“Como vai a coisa?” Olhou para seu relógio. “Fizemos um bom negócio aqui.”
O tripulante olhou para ele de relance, irritado. “Como você explica aquilo?”
“Qual o problema? Precisamos disso mais do que eles.”
“Te vejo mais tarde, capitão”. O tripulante seguiu seu caminho na plataforma, no meio dos pássaros marcianos de pernas longas, para dentro da nave. Franco observou enquanto ele sumia de vista. Estava justamente indo atrás dele, subindo a plataforma para entrar no embarque, quando ele o viu.
“Meu deus!” Ficou olhando, suas mãos nos quadris. Peterson estava andando pela trilha, seu rosto vermelho, levando a coisa em uma corrente.
“Desculpe capitão”, ele disse, puxando a corrente. Franco caminhou até ele.
“O que é isso?”
O wub ficou lá, indolente, seu grande corpo relaxando lentamente. Estava sentado, com os olhos semicerrados. Umas poucas moscas zuniam em seu flanco e ele balançava sua cauda.
A coisa sentou. Fez-se silêncio.
“É um wub,” disse Peterson. “Arrumei esse com um nativo por cinquenta centavos. Ele disse que é um animal muito incomum. Muito respeitado.”
“Isso?” Franco cutucou o grande lombo do wub. “Isso é um porco! Um grande porco sujo!”
“Sim, senhor, é um porco. Os nativos chamam isso um wub.”
“Um porcão. Deve pesar uns duzentos quilos.” Franco puxou um punhado do pelo grosso. O wub arfou. Seus olhos abriram, pequenos e úmidos. Então sua grande boca se retorceu.
Uma lágrima rolou pela bochecha do wub abaixo e caiu no piso.
“Talvez seja bom de comer,” disse Peterson nervosamente.
“Já, já saberemos,”, disse Franco.

       *       *       *       *       *

O wub sobreviveu à decolagem, profundamente adormecido no compartimento de carga da nave. Quando já estavam no espaço e tudo estava tranquilo, o capitão Franco pediu a seus homens que trouxessem o wub para cima para que ele pudesse descobrir que tipo de animal era aquele.
O wub grunhia e bufava, espremendo-se corredor acima.
“Venha”, ralhou Jones, puxando a correia. O wub se contorceu, esfregando seu couro nas paredes lisas cromadas. Ele irrompeu na ante-sala, caindo no chão como um pacote. Os homens saltaram.
“Meu deus,”, disse French. “O que é isso?”
“Peterson diz que é um wub”, disse Jones. “Pertence a ele.”. Ele chutou o wub. O wub se levantou cambaleante, arfando.
“Qual o problema com isso?” French chegou mais perto. “Será que vai ficar doente?”
Eles observaram. O wub revirava os olhos melancolicamente. Olhou os homens à sua volta.
“Acho que ele está com sede,” disse Peterson. Ele saiu para buscar água. French balançou a cabeça.
“Não é de se admirar que tenhamos tido tanto trabalho para decolar. Tive que refazer todos os meus cálculos de lastro.”
Peterson voltou com a água. O wub começou a lamber a água, agradecido, espirrando-a nos homens.
O capitão Franco apareceu na porta.
“Vamos dar uma olhada nisso.” Ele avançou, observando criticamente. “Você conseguiu isso por cinquenta centavos?”
“Sim, senhor”, disse Peterson. “Ele come praticamente de tudo. Eu o alimentei com cereal e ele gostou. E então, com batatas, com purê, com sobras de refeição, com leite. Ele parece que gosta de comer. Depois de comer ele deita e dorme.”
“Entendi”, disse o capitão Franco. “Agora, sobre seu gosto. Essa é a verdadeira questão. Duvido que haja sentido em engordar isso ainda mais. Parece estar gordo o suficiente pra mim, já. Onde está o cozinheiro? Quero ele aqui. Quero descobrir –“
O wub parou de tomar água e olhou para o capitão.
“Realmente, capitão”, disse o wub, “sugiro que conversemos sobre outros assuntos.”
A sala ficou em silêncio.
“O que foi isso?” disse Franco. “Bem agora.”
“O wub, senhor,” disse Peterson. “Ele falou.”
Todos olharam para o wub.
“O que ele disse? O que ele disse?”
“ele sugeriu que falássemos de outra coisa.”
Franco caminhou em direção ao wub. Andou à sua volta, examinando-o por todos os lados. Então voltou para junto de seus homens.
“Imagino se não haverá um nativo dentro dele,”, disse, pensativo. “Talvez devamos abri-lo para dar uma olhada dentro.”
“Oh, pelo amor de deus,”, gritou o wub. “É só nisso que vocês conseguem pensar? Matar e cortar?”
Franco cerrou os punhos. “Saia já daí! Quem quer que você seja, saia daí!”
Nada se moveu. Os homens permaneceram juntos, suas faces vazias, olhando para o wub. O wub balançou o rabo. De repente, ele arrotou.
“Perdão,” disse o wub.
“Não creio que tenha alguém aí dentro,” disse Jones em voz baixa. Eles todos se entreolharam.
O cozinheiro chegou.
“Queria me ver, capitão?” ele disse. “Que que há?”
“Isso é um wub”, disse Franco. “É de comer. Meça ele e arrume um jeito – “
“Acho que precisamos conversar”, disse o wub. “Eu gostaria de discutir isso com você, capitão, se possível. Vejo que você e eu discordamos a respeito de algumas questões básicas.”
O capitão levou um bom tempo para responder. O wub esperou, tranquilo, sugando a água de suas mandíbulas.
“Venha até meu escritório”, o capitão disse finalmente. Ele se virou e saiu da sala. O wub levantou e o seguiu. Os homens o olharam enquanto ele saia. Ouviram-no subir as escadas.
“Queria saber o que vai sair disso,”disse o cozinheiro. “Bom, vou estar na cozinha, me avisem assim que souberem alguma coisa.”
“Claro,”, disse Jones. “Claro.”

       *       *       *       *       *

O wub desabou relaxadamente em um canto, com um suspiro. “Perdoe-me,”, ele disse. “Temo que tenha-me tornado viciado em distintas formas de relaxamento. Quando se é tão grande quanto eu –“
O capitão assentiu, impacientemente. Sentou-se em sua mesa e cruzou as mãos.
“Tudo bem,”, disse. “Vamos começar. Você é um wub? É isso?”
O wub deu de ombros. “Suponho que sim. É assim que eles nos chamam, os nativos, quero dizer. Nós temos nosso próprio termo.”
“E você fala inglês? Já teve contato com gente da terra antes?”
“Não.”
“Então como você faz isso?”
“Falar inglês? Estou falando inglês? Não tenho consciência de estar falando nada em particular. Examinei sua mente –“
“Minha mente?”
“Estudei seu conteúdo, especialmente o estoque semântico, como eu o chamo –“
“Entendo,” disse o capitão. “Telepatia. Claro.”
“Somos uma raça muito velha,”, disse o wub. Muito velha e pesadona, é difícil para nós nos movermos por aí. Você há de entender que qualquer coisa tão lenta e pesada estaria à mercê de formas de vida mais ágeis. Confiar em defesas físicas não era de muita serventia para nós. Como poderíamos prevalecer? Pesados demais para correr, fracos demais para lutar, pacíficos demais para caçar –“
“Como vocês vivem?”
“Plantas. Vegetais. Podemos comer quase qualquer coisa. Somos muito universais. Tolerantes, ecléticos, universais. Vivemos e deixamos viver. É assim que nós vamos vivendo.”
O wub lançou um olhar para o capitão.
“E é por isso que eu objetei tão violentamente a esta história toda sobre me cozinhar. Eu podia ver a imagem na sua mente – a maior parte de mim no freezer, uma parte na panela, um pouco para seu gato de estimação –“
“Então você lê mentes?” disse o capitão. “Que interessante. Mais alguma coisa? Quer dizer, você faz mais alguma coisa parecida?”
“Uma coisinha ou outra.” Disse o wub, distraído, olhando o quarto á sua volta. “Um belo apartamento o que você tem aqui, capitão. Você o mantém bem arrumado. Eu respeito formas de vida organizadas. Alguns pássaros marcianos são bastante organizados. Eles jogam coisas fora de seus ninhos e os varrem –“
“Mesmo?” assentiu o capitão. “Mas, voltando á questão –“
“Perfeitamente. Você mencionou me jantar. Me foi dito que o gosto é bom. Um tanto gorduroso, mas macio. Mas como poderia algum contato mais permanente ser estabelecido entre seu povo e o meu se vocês usam de atitudes tão bárbaras? Me comer? Você, pelo contrário, deveria discutir questões comigo, filosofia, artes –“
O capitão levantou. “Filosofia. Pode lhe interessar o fato de que teremos bastante dificuldade para encontrar o que comer durante o próximo mês. Uma perda infeliz –“
“Eu sei.” O wub assentiu “Mas não estaria mais de acordo com seus princípios de democracia se todos disputássemos na sorte, ou algo assim? Afinal, democracia é para proteger a minoria justamente deste tipo de violação. Agora, se cada um de nós votasse –“
O capitão caminhou para a porta.
“Ora, dane-se,” disse. Abriu a porta. Abriu a boca.
Permaneceu lá, congelado, a boca aberta, os olhos mirando o vazio, seus dedos ainda na maçaneta.
O wub o observou. Depois, caminhou para fora da sala, passando ao lado do capitão. Seguiu pelo corredor, perdido em seus pensamentos.

       *       *       *       *       *

O quarto estava quieto.
“Veja você,”, disse o wub. “Nos temos um mito em comum. Sua mente contém muitos símbolos míticos familiares. Ishtar, Odisseu, -“
Peterson estava sentado em silêncio, olhando para o chão. Ele se mexeu na cadeira.
“Continue,” ele disse. “Por favor continue.”
“Vejo no seu Odisseu uma figura comum à mitologia da maioria das raças auto-conscientes. Da maneira como o entendo, Odisseu vaga como um indivíduo, consciente de si mesmo como tal. Esta é a ideia de separação, de separação da família e do país. O processo de individuação.”
“Mas Odisseu retorna para seu lar.” Peterson olhou pela janela da nave, para as estrelas, estrelas sem fim, queimando diligentemente no universo vazio. “Ele finalmente vai para casa.”
“Como devem fazer todas as criaturas. O momento da separação é um período temporário, uma breve jornada da alma. Ele começa, ele termina. O viajante retorna para sua terra e sua raça...”
A porta se abriu. O wub parou, virando sua grande cabeça.
O capitão Franco entrou na sala, os homens atrás dele. Na porta, hesitaram.
“Você está bem?” disse French.
“Você está falando comigo?” disse Peterson, surpreso. “Como assim?”
Franco abaixou sua arma. “Venha cá,” disse para Peterson. “Levante-se e venha até aqui.”
Silêncio.
“Vá em frente,” disse o wub. “Não há problema.”
Peterson levantou. “Pra que?”
“É uma ordem.”
Peterson caminhou até a porta. French agarrou seu braço.
“O que está havendo?” Peterson se soltou, com um safanão. “Que que há com vocês?”
O capitão Franco moveu-se na direção do wub. De seu canto da sala o wub olhou para cima, pressionado contra a parede.
“Interessante,”, disse o wub, “sua obsessão com a ideia de me comer. Imagino por que será.”
“Levante-se”, disse Franco.
“Se você assim deseja.” O wub levantou-se, grunhindo. “Seja paciente. Isso é difícil para mim.” Ficou de pé, arfando, sua língua balançando tolamente.
“Atire nele agora,” disse French.
“Pelo amor de deus!” exclamou Peterson. Jones se virou para ele rapidamente, seus olhos cinzentos de terror.
“Você não viu ele – como uma estátua, parado lá, sua boca aberta. Se não tivéssemos ido lá embaixo, ele ainda estaria lá.”
“Quem, o capitão?” Peterson olhou em volta. “Mas ele está bem, agora.”
Eles olharam para o wub, em pé no meio da sala, seu grande peito subindo e descendo com a respiração.
“Vamos,” disse Franco. “Fora do caminho.”
Os homens saíram da frente, para o corredor.
“Você está um tanto amedrontado, não?” disse o wub. “Por acaso fiz algo a você? Sou contra a ideia de ferir. Tudo que fiz foi tentar me proteger. Você esperava que eu corresse ansiosamente para minha morte? Sou um ser racional, como vocês mesmos. Estava curioso para ver sua nave, aprender sobre vocês. Eu sugeri aos nativos –“
A pistola balançou.
“Veja só,”, disse Franco. “Eu imaginava isso.”
O wub sentou, resfolegando. Pôs uma pata à frente, enrolando a cauda ao seu redor.
“Está muito quente. Percebo que estamos perto dos foguetes. Poder atômico. Vocês fizeram muitas coisas maravilhosas com isso – tecnicamente. Aparentemente sua hierarquia científica não está equipara para resolver questões morais, éticas –“
Franco virou para seus homens, apinhados atrás dele, olhos arregalados, em silêncio.
“Eu faço. Vocês podem assistir.”
French assentiu. “Tente acertar o cérebro. Não é bom pra comer. Não acerte o peito. Se a caixa torácica se esmigalhar, teremos que catar os ossos.”
“Escutem,” disse Peterson, mordendo os lábios. “Ele por acaso fez alguma coisa? Que mal ele fez, eu pergunto? E, de qualquer forma, ele ainda é meu. Vocês não têm direito de atirar nele. Ele não pertence a vocês.”
Franco levantou sua pistola.
“Vou sair,”, disse Jones, sua face pálida. “Não quero ver isso.”
“Eu também,” disse French. Os homens saíram, murmurando Peterson permaneceu na porta.
“Ele estava me falando sobre mitos,” ele disse. “Não teria machucado ninguém, ele.”
Ele saiu.
Franco caminhou na direção do wub. Este olhou para cima, lentamente. Engoliu em seco.
“Uma tolice,” ele disse. “Lamento que você deseje fazer isso. Havia uma parábola que seu salvador contava –“
Ele parou, olhando para a pistola.
“Você pode me olhar nos olhos e fazer isso?” disse o wub. “Você consegue fazer isso?”
O capitão olhou para baixo. “Posso te olhar nos olhos,” ele disse. Lá na fazenda a gente tinha porcos. Porcos selvagens imundos. Eu posso fazer isso.”
Olhando para o wub abaixo de si, para seus olhos brilhantes e úmidos, ele puxou o gatilho.

       *       *       *       *       *

O gosto estava excelente.
Eles estavam sentados ao redor da mesa, taciturnos. Alguns mal comiam. O único que parecia estar se divertindo era o capitão Franco.
“Mais?” disse, olhando em volta. “Mais? E algum vinho, talvez.”
“Não para mim,” disse French. “Acho que vou voltar para a sala de navegação.”
“Eu também.” Jones levantou-se, empurrando sua cadeira para trás. “Até mais.”
O capitão os observou partir. Alguns dos outros também aproveitaram para sair.
“O que você crê seja o problema?” disse o capitão. Virou-se para Peterson. Peterson estava sentado olhando para seu prato, para as batatas, as ervilhas e para o grande pedaço de carne macia e quente.
Ele abriu sua boca. Nenhum som saiu dela.
O capitãp pôs sua mão no ombro de Peterson.
“É só matéria orgânica agora,” ele disse. “A essência da vida se foi.” Ele comeu, pegando um bocado de molho com um naco de pão. “Eu mesmo, adoro comer. É uma das grandes coisas que uma criatura viva pode apreciar. Comida, descanso, meditação, discutir coisas.”
Peterson concordou. Dois outros homens se levantaram e saíram. O capitão bebeu um pouco de água e suspirou.
“Bem,”, disse. “Devo admitir que esta foi uma refeição bastante agradável. Todos os relatos que havia ouvido eram realmente verdade – o gosto de wub. Muito agradável. Mas eu estava impedido de apreciá-lo em tempos passados.”
Limpou os lábios com o guardanapo e se recostou na cadeira. Peterson olhava desanimado para a mesa.
O capitão o observava atentamente. Inclinou-se em sua direção.
“Ora, vamos,” disse. “anime-se! Vamos discutir coisas.”
Ele sorriu.
“Como estava dizendo antes de ser interrompido, o papel de Odisseu nos mitos –“
Peterson levantou-se de um salto, olhando-o.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Um jaguar, à luz da lua

Era uma dessas noites em que a lua cheia ilumina tão claramente a aldeia adormecida que quando você acorda não sabe se já amanheceu ou se você está sonhando. O círculo da aldeia, redondo e reluzente à luz do luar, parece a cena de uma fantasmagoria de Wegener. A luz pálida lhe empresta um tom sépia irreal que você poderia apreciar do camarote da varanda do posto de saúde onde está hospedado, vista completa e privilegiada do círculo da aldeia em toda a sua glória. Se você não estivesse dormindo agora - está mesmo? - quer dizer.

Você dorme profundamente - aparentemente, ao menos -  na salinha do posto, pequeno cômodo sem portas com a entrada voltada para dentro, para o corredor que dá para o pátio lateral. Como você repousa tão confortavelmente em um cômodo sem portas em uma aldeia Indígena - em uma aldeia não, na periferia imediata de uma, fora da segurança do círculo de casas - perdida na maior floresta do planeta? Mas a tranquilidade é só aparente, porque por trás de suas pálpebras um sono inquieto havia-se instalado, trazendo sonhos estranhos nos quais você não sabe exatamente se sonha ou se está ali, de pé na beira daquele círculo de casas que naquela luz parecem brotar do chão da forma mais improvável - mas não tão improvável quanto aquela onça pintada parada ali na sua frente, olhos curiosos fitando-o a menos de vinte metros de distância.

Ali, frente a frente com o jaguar improvável, passa por sua mente que aquela cena deveria ser vista em demi-plongé, naquele ângulo semi-divinal, etéreo, que Tarkovsky gostava de filmar seus personagens em momentos de humildade frente ao mundo. O jaguar o estuda, lentamente, seu olhar amarelo - de cor semelhante à luz que ilumina aquela cena, você não consegue deixar de pensar - percorrendo seu corpo da cabeça aos pés. Não só o corpo. O olhar do animal improvável desnuda sua alma, deixando-o exposto como uma criança recém-vinda ao mundo.

E agora você está ali, nu e só e indefeso, e aquele olhar amarelo está sobre você. Quanto tempo tudo isso dura? Você não sabe, nem sabe como está agora na cama, olhos abertos na escuridão observando os feixes de luz que o luar projeta no piso através das tábuas da janela e ouvindo aquele barulho de passos se afastando da sua janela em direção ao mato, passos humanos acompanhados daquele toc-toc de um bastão ou bengala batendo de leve contra o piso de cimento do pátio.

Você não sabe se tudo aquilo foi sonho, nem sabe o que dizer na manhã seguinte (você a aguardou acordado, ouvidos atentos, em seu quarto sem portas) quando os Índios excitados comentam sobre as pegadas de pés descalços encontradas na periferia da aldeia, ao lado de marcas redondas como as deixadas por um bastão daqueles que ajudam um velho a caminhar. E também de pegadas de onça, uma onça grande que parecia ter sumido no ar quando começaram as pegadas humanas acompanhadas do bastão, o andar de um velho. Aos poucos você decifra os pedaços de comentários que lhe chegam em ondas sucessivas e monta o quebra-cabeças de uma história sobre um velho wajangá, um xamã poderoso da época em que os avós dos habitantes atuais da aldeia viviam na mata sem contato com os brancos - apenas 'Índios selvagens não usariam chinelos para andar, no mato ou na aldeia - e que podia transformar-se em uma onça ao bater o pé no chão.

Vivendo no mundo dos jaguares por muitos anos, todos seus ombikwá, seus parentes e amigos, haviam morrido. O wajangá, no entanto, talvez sem perceber quanto tempo havia passado durante sua estada na floresta com os jaguares, visitava esporadicamente as aldeias de seu povo, saudoso daqueles que conhecera em sua vida como homem. Agora ele era um karõ, uma imagem do homem que um dia fora, desejoso de encontrar seus amigos e parentes e de compartilhar com eles algo da deliciosa refeição que trouxera da floresta dos jaguares. Mas os Índios sabem que os vivos comem com os vivos e os humanos com os humanos e que o wajangá, tanto tempo passado com os jaguares, agora é todo jaguar ou quase, apenas assumindo a forma de seu corpo humano para atrai-los para seu mundo, um mundo de presa e caçador, porque é assim que os jaguares são.

Você, é claro, não sabe o que pensar: não é bem o tipo de coisa que se ensina na escola de antropologia, a despeito de proverbiais relatos de avistamentos de magia Zande e congêneres. Sim, porque mesmo em seus devaneios mais simétricos e dialógicos e transculturais - e quaisquer outras metáfora indicadoras de um sonhado way out da disciplina - a antropologia permanece talvez a mais racionalista das disciplinas, sempre relegando sua não-razão ao nicho seguro do comentário en passant ou do pé-de-página out of joint.

Você não sabe novamente o que pensar, nem mesmo se há algo a ser pensado ou se seria melhor fazer coisa diferente, quando em outras aldeias em outros momentos da vida, mesmo já passados quase vinte anos, o mesmo sonho recorrente o encontra correndo pela floresta iluminada pela luz amarela da lua cheia dos olhos do jaguar, cada vez mais para dentro da mata, até que em um ponto improvavelmente escuro dela apesar da lua, você para e aguarda o jaguar que sabe que virá.



quinta-feira, 1 de agosto de 2013

América, por Allen Ginsberg (bilíngue, tradução minha)




Me amarrei nesse poema desde que conheci, mas nunca achei uma tradução para o português (conheço algumas, só) que sequer se aproximasse da irreverência, coloquialidade e ironia da poesia de Ginsberg - algumas são de uma sizudez medonha, quase oposta à linguagem do poema. A maioria - tem tantas! - traduz literalmente a última linha por exemplo, que literalmente é incompreensível - tem até um 'colocar meu ombro estranho na roda'. Nada a ver.Aí fiz minha própria. Segue junto com o original em inglês. Verdade, é amadora: eu amo pacas esse poema. Traduzo de forma muuuito livre coisas incompreensíveis em português, tipo 'look at yourself through the grave'. Outras, como 'flowerpots under the light of five hundred suns', deixo literal praqueles a quem basta meia palavra. Quem nunca cometeu perjúrio poético que atire a primeira estrofe alexandrina.





America I've given you all and now I'm nothing.
America, eu te dei tudo e agora não sou nada.



America two dollars and twenty-seven cents January 17, 1956.
América, dois dólares e vinte e sete centavos, 17 de janeiro de 1956.



I can't stand my own mind.
Eu tô que não me aguento.



America when will we end the human war?
América, quando nós vamos acabar com a guerra humana?



Go fuck yourself with your atom bomb
Vai se fuder com sua bomba atomica



I don't feel good don't bother me.
Eu não tô bom, vê se não enche o saco.



I won't write my poem till I'm in my right mind.
Não vou escrever meu poema até a minha cabeça estar no lugar.



America when will you be angelic?
América, quando você vai ser angelical?



When will you take off your clothes?
Quando é que você vai tirar sua roupa?



When will you look at yourself through the grave?
Quando é que você vai se ver com outros olhos?



When will you be worthy of your million Trotskyites?
Quando você vai merecer o seu milhão de trotskistas?



America why are your libraries full of tears?
América, porque suas bibliotecas estão cheias de lágrimas?



America when will you send your eggs to India?
América, quando é que você vai mandar os seus ovos pra Índia?


 
I'm sick of your insane demands.
Eu tô cheio das suas exigências insanas.



When can I go into the supermarket and buy what I need with my good looks?
Quando é que eu vou poder ir ao supermercado e comprar o que eu preciso só com a minha beleza?



America after all it is you and I who are perfect not the next world.
América, afinal de contas é você e eu que somos perfeitos, não o outro mundo.



Your machinery is too much for me.
Seu maquinário é demais pra mim.



You made me want to be a saint.
Você me faz querer ser um santo.



There must be some other way to settle this argument.
Deve ter algum outro jeito de acabar com essa discussão.



Burroughs is in Tangiers I don't think he'll come back it's sinister.
Burroughs está em Tangier, eu não acho que ele vai voltar, isso é sinistro.



Are you being sinister or is this some form of practical joke?
Você está sendo sinistra ou isso é algum tipo de pegadinha?



I'm trying to come to the point.
Eu tô tentando entrar no assunto.



I refuse to give up my obsession.
Eu me recuso a deixar minha obsessão.



America stop pushing I know what I'm doing.
América, pára de pressionar, eu sei o que eu tô fazendo.



America the plum blossoms are falling.
América, as flores da ameixeira estão caindo.



I haven't  read the newspapers for months, everyday somebody goes on trial for murder.
Tem meses que eu não leio os jornais, todo dia tem gente sendo julgada por assassinato.



America I feel sentimental about the Wobblies
América, eu me emociono com os Wobblies.



America I used to be a communist when I was a kid and I'm not sorry.
América, eu costumava ser comunista quando era garoto e não me arrependo.



I smoke marijuana every chance I get.
Eu fumo maconha sempre que eu posso.



I sit in my house for days on end and stare at the roses in the closet.
Eu sento na minha casa dias a fio e fico olhando as rosas no armário embutido.



When I go to Chinatown I get drunk and never get laid.
Quando eu vou pro bairro chinês eu fico bêbado e nunca pego ninguém.



My mind is made up there's going to be trouble.
Eu estou decidido, a coisa vai ficar feia.



You should have seen me reading Marx.
Você devia ter me visto lendo Marx.



My psychoanalyst thinks I'm perfectly right.
Meu psicanalista acha que eu sou perfeitamente normal.



I won't say the Lord's Prayer.
Eu não rezo o Pai Nosso.



I have mystical visions and cosmic vibrations.
Eu tenho visões místicas e vibrações cósmicas.



America I still haven't told you what you did to Uncle Max after he came over from Russia.
América, eu ainda não te disse o que você fez com o tio Max depois que ele voltou da Rússia.


I'm addressing you.
Eu tô falando com você.



Are you going to let our emotional life be run by Time Magazine?
Você vai deixar a revista Time controlar sua vida emocional?



I'm obsessed by Time Magazine.
Eu sou obcecado com a revista Time.



I read it every week.
Eu leio ela toda semana.



Its cover stares at me every time I slink past the corner candystore.
A  capa dela fica me encarando toda vez que eu passo de fininho pela birosca da esquina.



I read it in the basement of the Berkeley Public Library.
Eu leio ela no subsolo da biblioteca pública de Berkeley.



It's always telling me about responsibility. Businessmen are serious. Movie producers are serious. Everybody's serious but me. 
Ela tá sempre me falando sobre responsabilidade. Homens de negócio são sérios. Produtores de cinema são sérios. Todo mundo é sério menos eu.


It occurs to me that I am America.
Acaba de me ocorrer que eu sou a América.



I am talking to myself again.
Estou falando comigo mesmo de novo.


Asia is rising against me.
A Ásia está se levantando contra mim.



I haven't got a chinaman's chance.
Não tenho um pentelho de chance sequer.



I'd better consider my national resources.  
É melhor eu considerar meus recursos nacionais.


My national resources consist of two joints of marijuana millions of genitals
Meus recursos nacionais consistem de dois baseados de maconha e milhões de genitais



an unpublishable private literature that goes 1400 miles and hour and
uma literatura pornô impublicável que anda a 1400 milhas por hora e



twentyfivethousand mental institutions.
vintecincomil instituições mentais.



I say nothing about  my prisons nor the millions of underpriviliged who live in
Não vou nem falar de minhas prisões nem dos milhões de desprivilegiados que vivem em



my flowerpots under the light of five hundred suns.
meus vasos de flores sob a luz de quinhentos sóis.



I have abolished the whorehouses of France, Tangiers is the next to go.
Eu aboli os puteiros da França, Tangiers é a próxima a ir pro buraco.



My ambition is to be President despite the fact that I'm a Catholic.
Minha ambição é ser presidente, apesar de eu ser católico.


America how can I write a holy litany in your silly mood?
América, como é que eu posso escrever uma litania sagrada com você nesse seu mau humor?



I will continue like Henry Ford my strophes are as individual as his
Eu vou continuar como Henry Ford minhas estrofes são tão individuais quanto seus



automobiles more so they're all different sexes
automóveis mais ainda elas são todas sexos  diferentes.



America I will sell you strophes $2500 apiece $500 down on your old strophe
América eu te vendo estrofes por $2500 a peça, volto quinhentão na sua estrofe velha



America free Tom Mooney
América liberte Tom Mooney



America save the Spanish Loyalists
América salve os republicanos espanhóis



America Sacco & Vanzetti must not die
América, Sacco e Vanzetti não podem morrer



America I am the Scottsboro boys.
América, eu sou os rapazes de Scottsboro.



America when I was seven momma took me to Communist Cell meetings they
América, quando eu tinha sete anos mamãe me levava nos encontros da Célula Comunista eles



sold us garbanzos a handful per ticket a ticket costs a nickel and the
nos vendiam grão-de-bico, uma punhado por ingresso um ingresso custava um níquel e os



speeches were free everybody was angelic and sentimental about the
discursos eram de graça todo mundo era angelical e se comovia com a situação dos



workers it was all so sincere you have no idea what a good thing the party
trabalhadores era tudo tão sincero você nem tem idéia o tanto que o partido era bom



was in 1935 Scott Nearing was a grand old man a real mensch Mother
em 1935 Scott Nearing era um grande velhinho, era o cara,  a Mãe



Bloor made me cry I once saw Israel Amter plain. Everybody must have been a spy.
Bloor me fez chorar eu vi uma vez Israel Amter bem ali. Todo mundo devia ser espião.



America you don're really want to go to war.
América, você não quer ir mesmo pra guerra.



America it's them bad Russians.
América, é aqueles russo malvado.



Them Russians them Russians and them Chinamen. And them Russians.
Aqueles russo, aqueles russo e aqueles chinês. E aqueles russo.



The Russia wants to eat us alive. The Russia's power mad. She wants to take our cars from out our garages.   
Essa Rússia quer ferrar com a gente. Essa Rússia é doida por poder. Ela quer tirar nossos carros de nossas garagens.


Her wants to grab Chicago. Her needs a Red Reader's Digest. her wants our
Ela qué tomar Chicago.
Ela pricisa de um Reader’s Digest Vermelho. Ela qué nossas



auto plants in Siberia. Him big bureaucracy running our filling stations.
fábrica de carro na Sibéria. Aquelas burocraciazona dirigindo nossos posto de gasolina.



That no good. Ugh. Him makes Indians learn read. Him need big black niggers.
Isso né bom não. Putz. Eles faz os Índio aprendê a ler. Eles precisa de uns negão grandão.



Hah. Her make us all work sixteen hours a day. Help.
Credo
. Ela qué fazê a gente trabalhar todo mundo dezesseis horas por dia. Socorro.



America this is quite serious.
América, isso é muito sério

.

America this is the impression I get from looking in the television set.
América essa é a impressão que eu tenho vendo televisão.



America is this correct?
América isso está certo?



I'd better get right down to the job.
É melhor eu começar logo o serviço.



It's true I don't want to join the Army or turn lathes in precision parts
É verdade que eu não quero entrar pro exército nem ficar operando tornos em fábricas de



factories, I'm nearsighted and psychopathic anyway.
peças de precisão, aliás eu já sou míope e psicopata mesmo.



America I'm putting my queer shoulder to the wheel.
América, a bicha aqui tá correndo atrás, viu.